4 de dez. de 2009

Filmes de animação para adultos

por Jessica Almeida


“O meio é a mensagem”. Aqui talvez não no sentido exato que Marshall McLuhan quis expressar, mas no que diz respeito às escolhas tomadas em relação à forma e, principalmente, suas consequências sobre o conteúdo. A produção de qualquer filme envolve muitas dessas escolhas. No caso das adaptações, isso se intensifica, já que adaptar é optar pela forma mais adequada de exprimir algo que já exista, de uma maneira alternativa.

Quando um autor decide por conceber seu filme em formato de animação, não costuma ser por mero capricho, isso quer dizer alguma coisa. Principalmente quando esse filme possui “temática adulta” – favor não levar para o lado pornô da coisa. É o caso de Persépolis (2007), filme adaptado dos quadrinhos homônimos da iraniana Marjane Satrapi, nos quais contou histórias autobiográficas, vividas durante a Revolução Islâmica. Ao contrário do que se possa imaginar à primeira vista, o filme não é somente voltado ao público infanto-juvenil. Seu “conteúdo” diz respeito a questões complexas, relacionadas ao crescimento de uma garotinha em meio a conflitos de diferentes naturezas.

O fato de ser uma animação torna Persépolis uma obra bastante peculiar. O que talvez fosse apenas o simples relato de determinada situação, se tornou um produto cheio de delicadeza. A escolha do preto e branco para as cenas de memória, que compõem a maior parte do filme, torna isso ainda mais intenso. A pequena Marji talvez não fosse tão expressiva e cativante vivida na pele de uma menininha de verdade. A força do filme está em sua forma, responsável por torná-lo atraente e inovador.

Outro caso nesses moldes é o de Valsa com Bashir (2008), que trouxe às telas a busca de um ex-combatente da Guerra do Líbano pela memória que involuntariamente – ou não – apagou de seu pensamento: o massacre nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, em 1982. Também “baseado em fatos reais” – expressão bastante adequada, uma vez que os fatos reais estão exatamente na base do filme – é mais sisudo que o anterior. De qualquer forma, não chega nem perto da agressividade visual contida em outros filmes sobre guerra e o responsável por isso é o fator animação. Os personagens deste não são tão expressivos quanto os de Persépolis, mas em compensação, a fotografia é impecável e alguns recursos, como o travelling visto nos últimos minutos, dão grande sensação de verossimilhança ao espectador. Suave é um termo que definiria bem esse filme.

Valsa com Bashir

Waking Life (2001) caracteriza um outro tipo de adaptação. Sua história não é real, no sentido de ser a transcrição cinematográfica de uma experiência vivida em plano físico por um indivíduo. Entretanto, é “baseado em figuras reais”, já que, uma vez filmado com atores, teve, posteriormente, uma película especial sobreposta às imagens, a qual deu a elas texturas de animação. Esta técnica tão pouco comum transformou o filme em mais um exemplo de que forma e conteúdo não se dissociam no cinema. Waking Life tem em seu enredo um jovem que tem consciência de que está sonhando, mas não consegue acordar. É difícil pensar em outra técnica que deixe um filme mais parecido com um sonho do que a animação, uma vez que ela possibilita, sem maiores ônus, a criação de situações não-reais. O que é um trunfo, afinal, onde o ser humano pode ser mais inverossímil do que em seus sonhos?

As reflexões filosóficas que permeiam o filme – outra característica que o aproxima da adaptação: há diversas falas de célebres filósofos em meio aos seus diálogos – são ilustradas com recursos visuais como imagens em camadas, caricaturização dos corpos e desconexão entre os elementos, entre outros. O curioso é que, diferente dos filmes citados anteriormente, Waking Life não possui uma unidade que diga das imagens como um todo. A cada cena os traços são de um tipo e à medida que os acontecimentos se desenrolam é que a tela vai se adaptando, de modo a completar os quadros formados.

Waking Life

“Quem vê forma, não vê conteúdo” é uma falácia que sabe Deus porque se propagou; talvez pelo mesmo motivo que “sua inveja faz a minha fama” ou “Deus me disse, desce e arrasa”. Pode até ser que a primeira faça algum sentido em algum plano da vida, mas esse plano definitivamente não é o cinema. O uso da animação em filmes adultos é só mais um exemplo entre os vários que justificam essa negação.

Filmes citados:

Persépolis (Persepolis), Vincent Paronnaud, Marjane Satrapi (2007)

Valsa com Bashir (Waltz with Bashir), Ari Folman (2008)

Waking Life, Richard Linklater (2001)

3 de dez. de 2009

Adaptações ideológicas em quatro versões de "A Onda"

Por Otavio Oliveira



Diante do Fürher, membros da Onda fazem a saudação. Crédito: Divulgação.

Ao som de Rock n’ Roll High School, dos Ramones, um professor de educação física cruza a cidade em seu carro, rumo à escola secundária onde leciona. Dentes irregulares, cabeça raspada e atitude desobediente e anárquica são as primeiras características que se nota a respeito de Rainer Wenger, futuro líder de um movimento totalitário, fascista e manipulador. O personagem e o contexto ficcional em que ele está inserido surgem como a maneira mais interessante (carregada de mea culpa) e objetiva de contar uma história nascida 40 anos atrás, cujas raízes se enterram e se escondem sobre superfície da história alemã, européia e mundial.

Muito embora o totalitarismo nazifascista – nascido na Europa na década de 30 com o objetivo de sugerir uma superioridade ideológica baseada em características raciais, de gênero e religião – seja considerado, hoje, condenável e irracional pela sociedade, líderes e ideologias muito atuais nos fazem enxergar que 80 anos fazem muito pouca diferença. Nesse contexto, o mundo ocidental enxerga no espelho formas saudáveis que superaram a vitimização por ataques terroristas e a culpa pelo imperialismo desonesto e bombas atômicas. O pequeno fascista adormecido dentro de cada cidadão comum, que desperta com o barulho dos mais tolos estímulos de propaganda e falsos sentimentos de pertença, é o tema que emerge do mise-en-abyme que são as quatro versões da Onda.

Palavras repetidas

Em 1967, o professor de história Ron Jones propôs aos alunos do ensino médio de uma escola em Palo Alto, na Califórnia, um experimento de vivência fascista. O mote era o questionamento dos alunos acerca da inconsciência e da inércia dos cidadãos alemães não ligados ao Partido Nazista em relação ao Holocausto. Para provar como a manipulação das massas (nas palavras de Adorno, uma “psicanálise às avessas”) funcionava, o professor criou um regime ideológico intitulado “A Terceira Onda”, do qual ele próprio era o líder. O ideal comunitário em detrimento do favorecimento individual e o sentimento de pertença a um grupo forte e unido (embora sem propósito definido) fascinaram a maioria dos alunos menos atentos, que nem mesmo puderam perceber a manipulação a qual se sujeitavam. O movimento se alastrou e, antes que pudesse fugir ao controle de Jones, ele convocou todo o grupo para apresentar um novo líder. No auditório da Cubberley High School, mostrou aos presentes um vídeo com imagens de Hitler. A figura do líder nazista foi um choque de realidade para os envolvidos com A Terceira Onda, que perceberam, por fim, os propósitos metodológicos e didáticos do professor.

Por meio dos relatos e reportagens da época, é difícil estipular quais as verdadeiras dimensões do experimento de Ron Jones e mais ainda os impactos ideológicos sofridos pelos alunos, que deviam ter entre 16 ou 17 anos. Entretanto, com as primeiras adaptações ficcionais do acontecimento, temos como base alguns personagens chave que se repetiram, mesmo que adotando certas características diferentes ao longo dos anos.

Seis anos depois, Ron Jones escreveria um ensaio no qual os impactos da Onda eram colocados em questão. Baseado nos escritos do professor, Johnny Dawkins idealizou, em 1981, um especial educativo para TV que foi, anos mais tarde, distribuído mundialmente. Didático, leve e moralista, A Onda (The Wave) (veja o filme online, pelo Youtube) não poderia se adequar melhor às circunstâncias para as quais fora criado: suscitar, nas escolas americanas, alguma reflexão superficial sobre o totalitarismo e a importância da individualidade (conveniente) ao modelo americano, livre de qualquer culpa, pelo menos nesse “incidente histórico”.

O telefilme tem tons pastel, é repleto de máximas e frases-feitas, e didático ao extremo, tal qual fora, decerto, o método do professor Ron James. O professor-modelo Mr. Ross usa um suéter marrom sobre sua camisa de gola enquanto ensina a lição de moral anti-nazista por linhas tortas, interpretadas de maneira equivocada por grande parte da turma.

No mesmo ano, Morton Rhue (pseudônimo de Todd Strasser) baseou-se no telefilme de Dawkins para escrever A Onda. Nas cento e vinte páginas, Rhue reconta a história de Jones e Ross, com os mesmos personagens e diálogos do especial educativo de TV. O ideário moralista que, vale repetir, serve como uma luva à sociedade estadunidense que insiste na auto-reflexão como redenção histórica, permanece nesta terceira versão.

A história do professor chegou aos palcos, competindo com outras reviravoltas morais incitadas por outros professores na história da ficção norte-americana das últimas duas décadas. Às vésperas do aniversário de 70 anos do fechamento dos últimos campos de concentração nazistas na Europa, o cinema alemão decidiu remexer na ferida e expurgar demônios da hipocrisia histórica. A Onda (Die Welle), filme de 2008, recria a história.

Ainda que fosse repleto dos mesmos vícios moralistas das versões anteriores, A Onda já sairia na frente, na comparação, pela virtude de duas mudanças radicais: o cenário, desta vez, é a própria Alemanha, mesmo país que viu surgir o nazismo, onde a pergunta “Onde é que estavam os outros alemães enquanto os nazistas exterminavam milhões de pessoas inocentes?” reverbera mais intensamente. A segunda mudança está na figura do professor. Rainer Wenger não é nem de longe o professor modelo. Bem mais fácil e cômodo acusá-lo de manipular jovens inocentes do que apontar o dedo para um professor engomado como Mr. Ross.


Á esquerda, o engomado Mr. Ross em A Onda (1981); à direita, o Fürher Wenger em A Onda (2008). Crédito: Divulgação.


Emulação branca

O diretor alemão Dennis Gansel aproveita bem o tempo que tem para desenvolver a história complexa e delicada de A Onda. O filme tem 107 minutos, contra 45 da primeira versão para a televisão. O tempo do telespectador, porém, é mais incômodo na versão germânica que na história estadunidense. São mais claras as nuances de cada personagem, além da inserção de novos conflitos secundários e uma rede de relações humanas tratadas de maneira mais profunda.

A desobediência civil, a extrapolação dos limites de uma ideologia sofista (cuja única força motriz é a própria ideologia) e as características fascistas do movimento que vão criando raízes na mentalidade dos estudantes colorem de vermelho a monocromia branca que o filme se torna a partir do segundo ato. A Onda de Gansel em maiores proporções do que a de Rhue e Dawkins. Atinge toda a cidade, mexe com as estruturas familiares e desafia as autoridades. A figura de liderança de Wenger é questionada, sua onisciência é colocada em xeque, ele próprio fraqueja e se contradiz, ora foge da culpa, ora a assume. Pela sua oscilação, ele não é poupado, ao contrário do professor da outra versão.

Interessante perceber, ainda, que, embora a reflexão sobre o nazismo tenha inspirado Wenger (assim como o professor Ross e o próprio Jones, o original), não é por meio da figura de Hitler ou a comparação com a juventude hitlerista e o Holocausto que o movimento entra em choque. Essa mudança também é um ponto a favor de Gansel: a obviedade maniqueísta e moralista apenas passa perto do filme alemão, mas não o define.

A Onda de Gansel tem uma força própria e independe de seu substrato. Não tem função didática como protagonista. É, sozinho, um tratado sobre ideologia, manipulação, emulação e, sobretudo, sobre a humanidade, tal qual A Experiência (Das Experiment, 2001), de Oliver Hirschbiegel. Os dois exploram os limites conflituosos da psique colocada em evidência. Apesar de tomarem caminhos opostos, ambos tratam de experiências que fugiram ao controle e têm desfechos parecidos. Entretanto, podemos nos forçar a analisar que, em A Onda, o movimento proposto pelo professor Wenger perdeu o controle muito antes e de maneira mais inevitável do que a simulação de prisão em que o desregulado guarda Berus está envolvido.

Como ninguém tinha pensado nisso antes?

A contracorrente do movimento é exemplificada pela personagem Karo (Laurie, na outra versão), uma aluna que se recusa a fazer parte dA Onda. Embora nem mesmo Wenger possa perceber, no primeiro momento, Karo compreende mais do que qualquer um dos outros colegas o verdadeiro significado daquela experiência. O dilema quase piegas de seu namorado Marco (ou Dave, na história dos EUA), dos membros mais entusiastas dA Onda que se surpreende ao agredir a namorada (detalhe: na versão estadunidense, Dave empurra Laurie, na alemã, Marco dá um tapa forte no rosto de Karo), marca o ponto de virada da história e a move para o final quase inevitável.



Não se trata de fazer vista grossa para eventuais defeitos na narrativa ou na diegese de A Onda de Gansel, mas de ressaltar em que meandros o filme pôde ir além na reflexão do totalitarismo intrínseco ao ser humano. Os alunos de Wenger só valorizam a comunidade e o sentimento de pertença de maneira subjetiva, e pecam por ignorar que A Onda só faz sentido porque alimenta o individualismo de cada um. É, decerto, o que acontece com Tim, o freak da turma (nas outras versões, o personagem é Robert).

Todos os problemas de auto-estima do adolescente engatilham as melhores sequências do filme e criam um novo conflito, completamente inexistente nas outras versões. Ao espectador mais incrédulo, o clímax de A Onda de Gansel pode parecer forçado e não menos vicioso do que o moralismo de Dawkins e Rhue. Mas a ousadia do diretor alemão em ir até o extremo da situação e problematizar não apenas o que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido naquela escola californiana, em 1967, é valiosa.

Toda a nossa doutrinação ficcional alavancada por episódios reais de violência no mundo adolescente como os retratados em Elefante, de Gus Van Sant, e Querida Wendy, de Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, nos levam a prever a atitude de Tim. Como espectadores, até queremos que ela aconteça, mas nos confundimos na hora de apontar os culpados. A punição sobre o desfecho desagradável do movimento – e do filme, por conseqüência – recai sobre Wenger. O personagem quebra a quarta parede e nos olha nos olhos, como que nos encarasse e nos perguntasse se ele é mesmo o culpado, ou se a culpa é da história, ou do nosso fascista adormecido. Percebemos logo que o desfecho, por mais decepcionante que possa ser (e não acho que seja), é o ás na manga de Gansel. Ele foge com maestria do moralismo, caminha sobre a corda bamba do maniqueísmo, e nos faz sentir o gosto amargo da inevitabilidade.


Filmes Citados:

A Onda (Die Welle), Dennis Gansel (2008)

A Onda (The Wave), Johnny Dawkins (1981)

A Experiência (Das Experiment), Oliver Hirschbiegel (2001)

Querida Wendy (Dear Wendy), Thomas Vinterberg e Lars Von Trier (2005)

Elefante (Elephant), Gus Van Sant, 2003

Páginas na tela: a adaptação literária no cinema

Por Ana Flávia Oliveira



Tensões entre o cinema e a literatura sempre existiram e sempre vão existir. Isso porque muitos encaram o livro como uma espécie de “sinopse bem desenvolvida” e insistem na idéia de fidelidade completa do filme em relação à obra literária.

É preciso pensar, no entanto, que a literatura e o cinema constituem dois campos que, apesar de dialogarem, possuem possibilidades expressivas e estéticas diferentes. Devem ser respeitadas as características peculiares de cada meio – cinema e livro – e lembrar que elas não se reduzem apenas as diferenças entre linguagem escrita e visual, mas àquilo que é próprio de cada um deles.

O texto literário estabelece com o leitor uma relação individual, íntima e afetiva. Além disso, tem como matéria-prima as palavras e sua ambigüidade. O cinema, ao contrário, é uma experiência quase sempre coletiva e tem como matéria prima a objetividade das imagens, articuladas ao som e a montagem. Todos esses aparatos próprios do cinema irão trazer modificações ao texto literário quando adaptado as telas. O que acontece é que os leitores esperam que aquela relação que se teve com a leitura seja transportada para o cinema, o que não acontece. O sujeito precisa, então, criar outras relações afetivas e isso lhe causa estranhamento.



O iluminado, filme de Stanley Kubrick adaptado de um romance de Stephen King, por exemplo. O diretor partiu de um ícone do horror, que já havia vendido milhares de cópias e que já tinha um público fiel satisfeito com a atmosfera de terror criada pelo livro. Kubrick, no entanto, resolveu fazer algo que não fosse uma mera reprodução filmada do romance.

O longa agradou aos cinéfilos e desagradou aos fãs de King. Os que eram a favor de Kubrick ressaltaram a técnica do cineasta para contar a história. Aqueles que preferiam a obra original disseram que o filme cortou partes essenciais da trama – com a questão do Iluminado, tratada de raspão– e que o longe trouxe um viés muito sugestivo. Kubrick retirou todos os monstros do longa – deixando apenas alguns no final – e preferiu se concentrar na degradação psicológica dos personagens causada pelo ambiente e não totalmente pela sobrenaturalidade.

Outra questão que envolve as adaptações da literatura para o cinema é o estilo. Da mesma forma que os escritores possuem um modo próprio de escrever, também assim acontece no mundo do cinema. Ainda que pautados nas obras literárias, os diretores imprimem na película suas crenças, seus objetivos e seu estilo. Sendo assim, é possível ao cineasta interpretar, se apropriar e criar outros sentidos para aquele texto. Ele pode ser completamente fiel àquilo que está no livro ou pode utilizá-lo como inspiração e criar, a partir desse pano de fundo dado pelo texto literário, algo completamente novo. A adaptação será feita tendo em vista aquilo que o cineasta deseja expressar. Além disso, deve-se entender que escritor e cineasta têm sensibilidades e propósitos completamente diferentes.



A fogueira das Vaidades, de Brian De Palma, é um bom exemplo, sendo considerado por alguns críticos como uma anti-adaptação. O filme se baseia no livro de Tom Wolf, que buscava criticar os costumes estabelecidos nos anos 1980, década do advento dos Yuppies - executivos de grandes corporações ou do mercado de ações que enriqueceram rapidamente – de Wall Street. A polêmica já começou com a escolha do elenco, principalmente pela opção de Tom Hanks para interpretar Sherman McCoy. O próprio autor do livro, Tom Wolf, criticou a adaptação, alegando muitas mudanças de personagens (como, por exemplo, a transformação do juiz White, que no livro era judeu e no filme passou a ser negro). Além disso, alguns críticos alegam que De Palma transformou o livro numa comédia, “eliminou toda a crise existencial do anti-herói e transformou o cínico jornalista inglês que era a ‘consciência’ do livro, no próprio autor dele” (Contracampo).

Ao se olhar para as adaptações, deve se ter em mente que é o escritor quem possui um compromisso com o leitor e não o cineasta. No entanto, existem aqueles que fazem suas adaptações totalmente voltadas aos leitores. Senhor dos Anéis, por exemplo. O diretor Peter Jackson comunicou-se com os fã-clubes de Tolkien para que o longa não desagradasse a ninguém. O resultado foi um filme que satisfez bastante os apreciadores de Senhor dos Anéis – um público que, diga-se de passagem, já estava pré-disposto a gostar do filme –, mas que, no entanto, pode não ter sido tão agradável àqueles que não eram fãs do livro ou que gostariam de ver um lado mais original de Jackson.

Para fazer os filmes da saga Harry Potter, J.K. Rowling, autora do livros do bruxinho,  inspecionou toda a feitura dos filmes. Mesmo assim, o último filme lançado, Harry Potter e o enigma do Príncipe, não agradou tanto aos fãs, mesmo se mantendo bastante fiel ao livro. Esse é um risco – de não agradar aos fãs do livro - que os cineastas sempre irão correr ao fazer adaptações, pois como já foi dito, cinema e literatura trazem duas experiências completamente distintas.

Talvez seja melhor que o cinema tente ser ele mesmo de forma plena e não tentar ser literatura. Não se está dizendo que não se devam fazer adaptações. O que se deseja que é que, ao trazer textos literários para as telas, se possa fazer com liberdade e criatividade. Caso contrário o cinema pode perder aspectos preciosos de sua natureza e acabar ficando num meio termo – não sendo nem cinema, nem literatura.

Referências bibliográficas:

CURADO, M. E. . Literatura e cinema: adaptação ou tradução?. Temporis(ação) (UEG), v. 1, p. 101-117, 2008
http://www.contracampo.com.br/47/fogueiradasvaidades.htm (acessado em 3 de dezembro)
http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=237 (acessado em 3 de dezembro)

Filmes citados

O iluminado (The shining), Stanley Kubrick (1980)

Harry Potter e o enigma do Príncipe (Harry Potter and the Half-Blood Prince), David Yates (2009)

A fogueira das vaidades (The bonfire of the vanities), Brian de Palma (1990)

Senhor dos anéis (Trilogia) (The Lord of the Rings), Peter Jackson e Fran Walsh (2001, 2002 e 2003)

As Memórias de Woody Allen

por Clarissa Vieira


No início vemos um homem sentado em um vagão ferroviário com uma expressão um pouco aflita. No vagão, junto com ele, estão pessoas estranhas, figuras exóticas. Um homem chora copiosamente ao seu lado. Um primeiro plano mostra um maquinista sisudo. O homem olha para fora e, no vagão ao lado, todos se divertem, riem bastante, uma linda mulher lhe manda um beijo e o barulho predomina. No vagão de nosso protagonista apenas o silêncio, a estranheza e o barulho de um relógio. O trem parte e o homem se desespera para saltar do vagão. Bate nas janelas, puxa cordas e tenta abrir as portas. Tentativas em vão. Na próxima cena vemos todos os passageiros em um lixão cheio de urubus. Tanto os que estavam no vagão melancólico quanto os que estavam no vagão em que a euforia predominava. A tela fica então escura e a projeção se encerra. Trata-se do novo filme de Sandy Bates (Woody Allen), cineasta em crise e protagonista de Memórias (Stardust Memories, Woody Allen, 1980).

Memórias tem início no final de um filme não bem recebido. Em meio a várias frases de críticos mordazes, se ouve “Eu achei horrível! Simplesmente horrível.” “Eu achei que era para ser uma comédia, é a pior coisa que já vi!” “Ele não sabe que tem o maior dom de todos, o dom do riso?”. É assim que adentramos o mundo das memórias e da, sempre fértil, imaginação de Woody Allen.

É freqüente ouvir que Memórias se trata de uma cópia do filme de Federico Fellini, 8¹/² (8¹/², Federico Fellini, 1963). Não há como não notar o diálogo que existe entre eles e a inspiração de Woody Allen nas lembranças em preto e branco do diretor italiano. O cineasta nova-yorkino é fã confesso do cinema de Fellini e, várias vezes, já assumiu seu encantamento pelo mundo exótico e onírico presente em vários de seus filmes. No entanto, Memórias passa longe de ser cópia de qualquer outro filme. A presença de Allen perpassa cada plano. O filme é Woody Allen de corpo, alma e memória!

Federico Fellini realizou 8¹/² após ganhar o Oscar como melhor diretor em 1960, por A doce vida (La dolce vita, Federico Fellini, 1960). Em seus escritos e entrevistas, conta das dificuldades que encontrava para realizar qualquer outro filme depois do reconhecimento internacional. Foi a partir da crise que teve a idéia para seu “oitavo e meio filme”. Seu protagonista, o cineasta Guido, encontra-se numa crise profissional e pessoal. Sandy Bates também é inspirado em seu diretor. No final da década de 1970, Woody Allen já havia sido reconhecido como um diretor interessante e com um toque bastante autoral, sobretudo no que dizia respeito a filmar comédias inteligentes. No entanto, sua primeira tentativa de filmar um drama com inspiração bergmaniana (Interiores, Interiors, Woody Allen, 1978) foi um fracasso de crítica e público. Sandy Bates é completamente atravessado pelas questões do próprio Woody Allen.

Assim como em 8¹/², Memórias acompanha um diretor de cinema em crise com seu ofício. Como o Guido (Marcello Mastroianni) de Fellini, Sandy Bates não sabe mais o que fazer com seu cinema. Quer fazer dramas, “Tudo o que eu vejo em volta é sofrimento humano”, diz ele, mas todos insistem que suas comédias antigas são muito melhores. Há sempre alguém querendo dar um palpite. Ele sofre cobranças da crítica, dos fãs, de amigos, amantes, mas, sobretudo, dele mesmo. Em seu apartamento, bizarramente decorado com grandes fotografias em preto e branco, seus produtores, seu agente e sua secretária insistem que ele deve comparecer ao fim de semana que está sendo preparado por uma famosa crítica de cinema para homenageá-lo. O evento acontecerá em um hotel no litoral. Essa viagem dará início a uma rememoração pessoal do protagonista que se mostra no filme por um belíssimo entrecruzamento de realidade, memórias e imaginação.

Com a saída de todos, Sandy encontra-se só na sala de seu apartamento. Ele olha para fora da janela e então ouvimos uma voz que vem do fora-de-campo: “Em que está pensando quando você olha para lá?”. Sandy responde e aproxima-se de Dorrie, uma complicada e bela mulher que havia sido um grande amor no passado. De uma hora para outra, ela aparece ali, do seu lado, e os dois conversam amorosamente. Ouvimos então um alarme que soa alto e de outro ângulo percebemos o personagem que ainda olha sozinho para o mundo lá fora. Sem cortes ou flash-backs, Sandy rememora Dorrie. É confuso e o espectador fica um tempo sem entender já que, durante a viagem, Sandy se lembrará de Dorrie como alguém que já não está mais com ele. Mas ela não estava ali, na sala de seu apartamento? Era apenas uma lembrança, um desejo do protagonista que surge no filme assim, despretensiosamente.

Em muitos momentos a memória será evocada dessa forma no filme de Woody Allen: através de belas seqüências que só depois descobrimos se tratar de uma lembrança ou imaginação do personagem por estarem imbricadas nos outros planos. Acompanhamos uma cena como se ela estivesse de fato acontecendo e, de repente, através de um corte da montagem (e algumas vezes mesmo sem ele), podemos descobrir se tratar de uma lembrança, talvez um sonho, imaginação ou mesmo outro filme do diretor protagonista. A metalinguagem é marcante em Memórias e crucial para dizer da memória do personagem e do próprio diretor. Woody Allen parece nos falar que suas lembranças também são atravessadas pelos filmes, reais e imaginados. E isso é bem possível, pois o cinema faz parte de sua própria história de vida.

A bela fotografia em preto e branco de Gordon Willis desempenha um papel importante na busca da figuração das lembranças. O universo da memória é, na maioria das vezes, confuso e pouco distinto. As tonalidades do filme e alguns planos em lugares escuros nos remetem a esse lugar abstrato e onírico dos pensamentos e rememorações. Nada é muito claro quando tentamos nos lembrar de momentos passados e épocas vividas. Igualmente interessante para dizer da confusão que envolve o lugar das memórias é a presença, no filme, do absurdo e de imagens que, talvez, poderíamos chamar de surrealistas: “Você pode me dar um autógrafo?” um fã pede a Sandy Bates, e completa: “Eu nasci de cesariana.”. Ou como no momento em que Sandy fica nervoso quando uma fã invade seu quarto para que eles durmam juntos e vemos, em seguida, uma cena em que um grupo de homens em companhia de Sandy tentam capturar sua “raiva” que havia escapado. A raiva é um mostro peludo que está à solta assassinando várias pessoas. Ela é, então, encontrada com a mãe de Sandy nos braços, a próxima vítima.



Dessa maneira, Memórias segue, a cada plano, mostrando a dificuldade que temos de rememorar nossa vida e os momentos que se já se foram e também para dar vazão a sentimentos e sensações não expressas, principalmente quando passamos por momentos de crise e questionamentos, como acontece com Sandy. É preciso imaginar para lembrar; criar metáforas mentais absurdas para conferir sentido a alguns acontecimentos ou sentimentos.

O uso da câmera subjetiva é também um ponto importante de Memórias. Várias vezes observamos o que o personagem vê: pessoas estranhas, figuras exóticas claramente inspiradas nos personagens fellinianos, um mundo vazio, por vezes sombrio. Essa possibilidade de olharmos através dos olhos do protagonista possibilita um acesso à subjetividade do personagem: talvez as coisas sejam diferentes, mas as vemos pelo olhar de um diretor atormentado por suas próprias questões.

Essas imagens do absurdo que conferem certo sentido ao real e metaforizam o estado do personagem atravessam todo o filme: Sandy vê, por vezes, cenas de sua infância. O garoto que ele foi anos atrás está no jardim pelo qual está passando ou fazendo mágicas no bar em que ele conversa com alguns conhecidos. Uma dessas cenas é particularmente bela: da janela de uma lanchonete, Sandy vê um grande elefante na praia. Junto ao elefante, ele se vê garotinho abraçando sua mãe em agradecimento pelo inusitado animal de estimação como presente. Sua mãe, no entanto, é Dorrie, o amor de anos atrás, o que nos lembra a bela cena de Fellini em que a mãe de Guido o beija apaixonadamente e se transforma, com um corte, em sua mulher. O garotinho, então, sai para o fora-de-campo para voltar como Sandy, já mais velho, que agradece um belo presente que Dorrie lhe dera. Os dois saem caminhando pela praia e Sandy conta a Dorrie sobre o presente que sempre quis quando pequeno: um elefante. É maravilhoso, pois em uma breve cena, vários aspectos da vida e das relações do protagonista estão presentes com uma metáfora. Dorrie havia sido como uma mãe? O presente que ela lhe dera traz uma questão da infância?

Com inspiração felliniana, Memórias é, sobretudo, um filme de e sobre Woody Allen. Não há como deixar de notar que Sandy é uma condensação das questões que atravessavam os pensamentos do diretor à época de realização do filme. Está tudo lá: a infância, as questões com a mãe, a psicanálise, os amores, o jazz, as escolhas e os dilemas como cineasta, a tentativa de se tornar menos engraçado diante de um mundo tão cruel. Todas essas são questões allenianas.

É no início mesmo do filme que Woody Allen introduz um elemento que diz da marca autoral de Memórias: dentro do vagão do qual Sandy Bates procura fugir desesperadamente soava um barulho de um relógio e havia, no bagageiro, uma mala que derramava areia como uma ampulheta que marca o tempo. Não podemos deixar de pensar na questão menos pessoal e mais existencial de Sandy/Allen, dessa vez contrastante com a de Guido/Fellini: o tempo urge, o universo está se decompondo (como Sandy afirma em uma das cenas com seus produtores) e a humanidade sofre. “Se nada dura, por que eu ainda faço filmes, ou por que faço qualquer coisa? pergunta ele aos alienígenas que surgem ao final do filme. “Nós gostamos dos seus filmes”, respondem eles. “Principalmente as comédias antigas”. Depois de algumas outras perguntas, Sandy diz: “Mas eu não deveria parar de fazer filmes e fazer algo importante como ajudar os cegos, ou virar um missionário, algo assim?”. Ao que o alien responde: “Deixa eu te falar uma coisa. Você não faz o tipo missionário. E você também não é o Super-homem, você é um comediante. Quer fazer à humanidade um grande favor? Conte piadas mais engraçadas!”. Sandy então desabafa: “Sim, mas preciso achar um sentido para tudo isso!”. A belíssima melodia de Glenn Miller fecha o diálogo e podemos assim pensar: simplesmente não há sentido para isso tudo. Um artista procura dar sentido através de sua arte e essa é também uma forma de transformação.


Filmes citados:

8¹/² (8¹/²), Federico Fellini, (1963)
A doce vida (La dolce vita), Federico Fellini, (1960)
Interiores (Interiors), Woody Allen, (1978)
Memórias (Stardust memories), Woody Allen, (1980)


A construção de uma memória coletiva do sertão em: O Fim e o Princípio (2005), de Eduardo Coutinho, e Aboio(2005), de Marília Rocha.

por Alexandra Duarte






Um céu aberto azul celeste, cadeiras na porta de casa. Dona Zefinha, 94 anos, diz não lembrar-se de quase nada, mas faz uma reza de quase dois minutos, sem falhar-lhe a lembrança em nenhum momento.

Assim começa a visita de Eduardo Coutinho e sua equipe ao sítio de Araças, uma comunidade do interior da Paraíba. Nesse momento, ele está à procura de uma locação e pessoas que falem da vida no sertão para fazer um documentário. Não existe um projeto, nem uma pesquisa prévia para a realização do filme, o que fica claro nos primeiros offs, nos quais Coutinho explica suas intenções. O Fim e o Principio (2005) é um documentário que vai trilhar seus próprios caminhos. Isso fica evidente na escolha em filmar (e inserir na montagem final) os trajetos percorridos pela equipe com uma câmera em mãos, que parece ter vida própria ao desbravar uma comunidade do sertão da Paraíba, em apenas, quatro semanas.

No mesmo ano, outra equipe adentra o sertão de Minas Gerais, Pernambuco e da Bahia. Mas, por esses lados, o início se dá com um canto entoado bem no meio da caatinga. Aboio (2005), também um documentário, começa sem nenhuma explicação, diferentemente do filme de Coutinho. O que mais marca é a trilha sonora, importante personagem das histórias que serão contadas.

O filme começa com o som de um sino superposto em seguida a um canto forte e alto na voz de um homem. Para introduzir a história, a documentarista Marília Rocha opta por imagens em super 8 e preto e branco da caatinga e de seus personagens (animais, vegetação, sol escaldante e vaqueiros), que obedecem o ritmo da trilha sonora. Só na segunda sequência, imagens em preto e branco de aparência envelhecida acompanham a narração em off de um homem que conta “naquele tempo...”.
Os dois filmes são distintos quanto aos efeitos visuais e sonoros que provocam. O Fim e o Princípio guarda relação com toda a obra de Coutinho. É uma reunião de vários depoimentos, encadeados e ao redor de temas comuns: a vida no sertão, a velhice, a morte. É um filme feito da espera e da paciência. Na cena em que conversa com Leocádio, Coutinho pergunta: “E hoje, você quer conversar?” ali, deixa escapar que aquela não era a primeira tentativa de conversa, que a aproximação demanda tempo e confiança.

Aboio segue no ritmo da cantoria dos vaqueiros, mais interessado numa imagem que dê conta de expressar e falar das forças, das cores, da história e, claro, do cotidiano dos vaqueiros no sertão. É um filme mais poético, ou seja, a construção de significados foge dos padrões narrativos e busca provocar mais sentimentos com a imagem do que com os depoimentos. Tanto é assim que grande parte destes são reproduzidos em offs e as imagens - descoladas das falas - acrescentam significados, ao invés de meramente ilustrarem o que é dito. Marília também explora na plasticidade da imagem as várias camadas e texturas do sertão. A secura, por exemplo, é sugerida pela luz estourada, e a aridez pelo travelling acelerado em meio à vegetação nativa.


Aparentemente são filmes sobre a vida no sertão. Mas, um olhar mais atento mostra que o mais importante nesses filmes é a capacidade de resistência das antigas tradições. As imagens em super 8, as fotografias que aparecem dos vaqueiros e as frequentes frases iniciadas com “naquele tempo”; “na época do meu pai”, provam, em Aboio, tal força em resistir. É a memória de uma época e de sua tradição que é trilhada no presente dos filmes, cuidadosamente tecida pelos vaqueiros do sertão por um lado, e, por outro, pelos moradores de Araçás. O ato de tecer a memória é metaforizado na cena em que Rita tece um fio de algodão, indicando o princípio do filme que Coutinho “procurava” na Paraíba.

Araças é um lugarejo do Brasil, esquecido pela cidade grande. O sítio torna-se um atrativo, apenas em épocas de eleição, para políticos à caça de eleitores. O único carro que vemos no filme é uma Kombi eleitoral (além, é claro, do carro da equipe de filmagem). Até os moradores mais jovens se esquecem de Araças, como, por exemplo, a sobrinha de Zé de Sousa, que passa todo o dia fora da comunidade. Em uma percepção filosófica, a memória é considerada fruto do esquecimento. Enquanto construção de uma lembrança efetiva, só existe memória porque há o esquecimento.

O documentário, em uma de suas linhas mais expressivas, busca pelo que foi esquecido e registra a construção da memória, por meio dos recursos técnicos e narrativos que o cinema proporciona. Em O Fim e o Princípio, isso se dá através da fala e, principalmente, da imagem duradoura dos corpos de Zefinha, Mariquinha, Zé Assis, Maria Borges e tantos outros.

Há no encadeamento de conversas uma sugestão: tudo se passa como se a equipe fosse uma parente distante do Rio de Janeiro que viaja à Paraíba e, ao chegar, vai fazer as visitas, como é de praxe no interior. No início do filme, Rosa traça um mapa de Araças localizando espacialmente seus parentes. A câmera ao filmar o caminho da equipe em suas visitas, reproduzindo o caminho traçado no papel, transporta o espectador para aquele universo.

Na maioria das vezes, os anfitriões oferecem café, um tradicional início para uma boa “palestra” (em outros lugares fala-se prosa). Os velhinhos gostam de conversar e Coutinho está disposto a ouvir. Falam sobre as rezas, as lendas, as dificuldades que enfrentaram no sertão, os tempos de juventude. A memória de muitos é impressionante e revela a força de uma cultura oral marcada por arcaísmos como palestra, ligeirinho, barruada (confusão), arengando (brigando), entre outros. Tudo isso contribui para o tom de conversa, como rememoração e criação de uma intimidade, efeitos produzidos pelo filme.
Alguns moradores são mais desconfiados e levam um tempo até se renderem à conversa, como Chico Moisés. A equipe não tem pressa. Com o tempo, sorrisos, risadas e, logo, Chico Moisés transforma-se, e a conversa dura mais de três horas.

A cena final de O Fim e o Princípio se dá ao redor da mesa, primeiro cheia na hora do almoço e depois vazia. O fim é na verdade o princípio. O filme começa recuperando e construindo junto àquelas pessoas uma colcha de retalhos, que resulta na memória coletiva da comunidade, memória feita através dos afetos. No fim, quando Coutinho vai se despedir dos moradores a relação de amizade firma-se na fala de Zé Assis: “Dexa sôdade na gente”.


Aboio também termina com saudade. O último depoimento é de um senhor que tem amor ao que faz. Ele compara o aboio a uma oração, um carinho feito ao gado. Segue-se um corte seco e as imagens voltam ao preto-e-branco em registro de super 8. Um quintal de animais, filmado bem de perto, e em um último off, um homem cantarola um aboio, que começa assim: “Fazer de quem tem saudade” e termina: “ô saudade companheira, de quem não tem companhia”.

O filme de Marília Rocha tenta reconstruir a tradição do aboio, canto tradicional entre os sertanejos para manter a boiada unida. Talvez, por isso, o som seja tão marcante. Mas o trabalho com as imagens é sem dúvida baseado na recuperação do passado. Assim, os dois filmes, ainda que usando de recursos diferentes, valem-se de um olhar atento e interessado para construírem em conjunto com as comunidades a imagem que represente com força e sentimento o sertão. Essa imagem é a memória, a presentificação de um tempo que não volta, mas pode e deve ser recordado, “re-vivido” e resignificado. A memória que revela a resistência da tradição, mantida pela cultura oral, pela preservação das crenças e rituais sertanejos.

Filmes citados:


O Fim e o Princípio, Eduardo Coutinho (2005)

Aboio, Marília Rocha (2005)

Memória e Morte em Morangos Silvestres de Ingmar Bergman

por Thalita do Carmo Gonçalves






Uma curiosidade natural humana é a morte. Muitos são os relatos e as hipóteses sustentadas a respeito. O cinema não distante, se apresentando como amplo espaço de discursão e arte, tem várias obras relacionadas. Talvez, o interessante não seja a conclusão, mas sim, questionar posturas e embarcar na nostalgia que a proximidade da morte evoca. Nesse sentido, o cinema de Ingmar Bergman é muito rico e metafórico. Para ilustrar a beleza que essa arte imprime aos dilemas da existência humana, esse texto se propõe a buscar os lugares da memória e da morte no filme Morangos Silvestres.

Morangos Silvestres conta momentos marcantes da vida de Isak Borg, um homem bem integrado na sociedade, capaz e disciplinado, um profissional conceituado na carreira, pai de um filho e já viúvo. Isak, que é médico e professor aposentado, é chamado à cidade de Lung para receber uma homenagem pelos seus cinquenta anos de profissão. Assustado com um sonho prefere ir de carro. A opção pelo carro é recheada de simbolismos e possibilidades, já que o carro é um local neutro e que, por estar em constante deslocamento, permite contemplação, reflexão e mudança.

Receber uma homenagem evoca um profundo processo de auto-avaliação e Bergman se aproveita dos 78 anos do personagem para propor que viessem a tona vários medos escondidos na memória. Os diálogos realizados no interior do veículo, durante a viagem, são ricos, reveladores e definem aparências sociais, medos, problemas conjugais e de personalidade. Quem o acompanha na viagem é a nora, que está mais interessada na carona do que na compania do sogro. Além dela, durante o trajeto, surgem outros caroneiros, primeiro três jovens e depois um casal.

O encontro com a morte é evocado em vários momentos, mas o principal e mais marcante se dá num sonho. Isak vê um caixão cair de uma carruagem (uma homenagem explícita e assumida ao filme A Carruagem Fantasma de Victor Sjöström), o caixão cai aberto e um braço fica estendido para fora, Isak se aproxima e é agarrado pela mão que se revela sua: o morto é seu próprio reflexo implorando por auxílio para sair dalí. Então, a partir dessa imersão, o filme, por meio de muitas coincidências e pequenos detalhes, explora a memória e a proximidade com a morte.

No caminho para receber a homenagem, Isak visita a casa em que viveu sua infância, sua adolescência e também sua primeira desilusão amorosa. Tão logo, encontra os três jovens caroneiros, que o remetem ainda mais à sua juventude e ao seu amor perdido, já que Sara, a garota da turma, tem o nome e a aparência da moça que o abandonou.




Durante a viagem, a morte aparece mais uma vez, quando por pouco não acontece um grave acidente de carro. Nesse incidente, um casal, que se relaciona com extrema hostilidade, invade a história, trazendo desconforto e fazendo emergir memórias ruins, tanto de Isak, sobre sua falecida esposa, quanto da nora Marianne, sobre seu difícil relacionamento com o filho de Isak.
Observando a estrutura da narração, destacam-se duas técnicas de memória: cut-back (voltar ao passado para situar o presente) e cut-off (deixar suspenso, sugerir). A cut-off geralmente se apresenta mais rica de significados, ao deixar uma sugestividade e por induzir o espectador a formar conectivos que dêem conta de interpretar o que os planos-seqüência propõem. Cabe ressaltar aqui, a subjetividade inerente a composição dos filmes que relacionam memória e morte, já que eles são construídos, por excelência, em cima da idéia da memória e da reconstituição de uma realidade vista de modo particular.

O personagem visita as verdades de seu passado e tenta exorcizar os fantasmas que ainda assombram sua memória. Família, religião, amor e profissão são postos sobre a ótica de uma realidade desconhecida, mas ao mesmo tempo pessoal, já que Isak busca rever pessoas que ama e tenta encontrar as respostas que inconscientemente já tem. A viagem, então, pode ser comparada a um purgatório, no qual Isak vasculha a memória angustiado por não saber se seu comportamento foi digno do céu ou do inferno.

Uma metáfora bastante pertinente é proposta quando repetidamente o céu ou seu reflexo é mostrado. Essa visão certamente flutua num interdiscurso com o universo religioso, onde muitas vezes o céu se pretende como “um lugar para ser feliz”, trata-se do lugar-comum amplamente divulgado como objetivo final e feliz de todas as vidas. Essa percepção é reforçada quando Isak, em seus sonhos, contempla demoradamente o céu.

As lembranças geram sensações tão fortes e vívidas que lhe parecem reais. Ele chega a dizer que algo o incomoda nesses sonhos e imagens, afirma que ficam chateando sua cabeça incansavelmente. Nesse ponto da narrativa, Bergmam faz algo realmente inusitado, uma fusão com imagens de pássaros voando e granando alto. Bergmam cria uma atmosfera que antecipa em seis anos o terror dramático que Hitchcock explora tão bem em Os Pássaros.

A câmera durante a maior parte do filme persegue o movimento da cena. No princípio, é até interessante, mas o uso contínuo desse recurso fica cansativo e gera um desconforto, visto que sugere uma perseguição nem sempre necessária a cena. Morangos Silvestres acerta em retratar o medo da morte através de sonhos surreais e objetos como o relógio sem ponteiros, mas peca no áudio. Os cortes abruptos do som ambiente, denigrem bastante o filme, já que não há pretensão, pelo menos não claramente, de um efeito estético ou narrativo, nem mesmo quando o personagem está em estado onírico.

No conjunto da obra, Ingmar Bergman deixa sua marca e acrescenta ao universo do cinema mais uma maneira de retratar a morte. No entanto, o mérito desse diretor e roterista extravassa ao conseguir dar leveza aos temores decorrentes do desconhecido e ao transformar um personagem ranzinza e mal humorado em carismático e digno de simpatia.

Citações:

A Carruagem Fantasma (Körkarlen, Suécia, 1921, dirigido por Victor Sjöström).
Os Pássaros (The Birds, EUA,1963, dirigido por Alfred Hitchcock)

L'homme de sa vie: o potencial criador da memória

por Lygia Santos




Uma certa tendência do cinema francês atual? Talvez seja arriscado afirmar com veemência essa impressão. Mas é certo que, recentemente, um número expressivo de produções francesas, de uma geração relativamente nova de realizadores (e, vale frisar, em grande parte mulheres), tem se revelado obras de arte de impressionante beleza estética e narrativa, engrandecendo o cinema contemporâneo e expandindo suas possibilidades expressivas. Infelizmente, muitos desses filmes não foram lançados em DVD no Brasil nem exibidos em salas de cinema – tornando difícil uma discussão compartilhada a respeito –, mas alguns já podem ser achados na internet para download. Para citar alguns nomes, temos L'homme de sa vie (2006), de Zabou Breitman, Les Inséparables (2008), de Christine Dory, e Le père de mes enfants (2009), de Mia Hansen-Love.


L'homme de sa vie transborda em ambigüidade; a começar pelo título, que poderia ser traduzido para o português como “O homem de sua vida”. Não fica claro a quem o possessivo “sua” se refere, pois há três importantes personagens cuja vida é completamente modificada por um homem: a mulher e seu marido; o marido e seu vizinho; o vizinho e seu pai. Um triângulo amoroso se forma, numa linha que vai de Fredérique (a mulher) a Hugo (o vizinho, homossexual assumido), passando por Fréderic (o marido, que coincidentemente tem o mesmo nome da esposa). Os acontecimentos transcorridos durante poucos dias de férias no interior da França são encadeados de tal forma que o espectador tem a impressão de passarem-se semanas. O tempo parece ter sido esticado em significação, fazendo-nos perder a referência de sua passagem. Importa para a narrativa não o tempo propriamente cronológico, mas psicológico da história. É a memória que conduz o curso dos fatos, dando ênfase ora a um gesto, ora a uma fala passada.


Num eterno retorno às conversas, aos olhares, aos toques, aos beijos, aos significantes que fazem aflorar os sentimentos transformadores do filme, somos colocados diante da exposição reflexiva de um processo. Esse processo consiste, precisamente, na “queda” de um homem (que cai de amores por seu vizinho, ou, em francês, tombe amoureux de son voisin), na passagem de um casamento feliz à paixão pelo vizinho gay, indo de um estado de coisas estável, previsível, cômodo, “perfeito”, à dor e delícia do desconhecido, do mistério, da descoberta de quem se é. A memória funciona, portanto, como estrutura base de uma narrativa fragmentada, feita de pulos, ciclos, idas e vindas, possibilitando um mergulho profundo na subjetividade dos personagens.
Ao longo de todo o filme, voltamos constantemente à madrugada na qual Fred(éric) e Hugo ficam acordados, conversando até o sol raiar – resistindo assim ao cansaço que toma Fred(érique) que, próximo à alvorada, vai deitar-se após beijar afetuosamente o marido. Temos acesso, à medida que a história avança, a algo mais próximo de uma possível totalidade do diálogo travado entre os dois – como se estivéssemos montando as peças de um quebra-cabeças. Se houvesse uma cronologia rígida que guiasse o filme, as cenas não pareceriam complementares e, sim, relativas a dias diferentes, a madrugadas sucessivas, cheias de álcool e conversas sobre o amor. Até porque cresce uma intimidade surpreendente entre Fred e Hugo para tão pouco tempo de convivência, ainda que ambos estivessem ébrios de vinho. O beijo da mulher (assim como, obviamente, a roupa dos dois e talvez também a luz precisa e efêmera daquela hora do dia ) é que denuncia a “unidade” desse encontro, pois o gesto se repete uma, duas vezes, sempre visto por ângulos diferentes. A mudança do enquadramento e da posição da câmera mostra justamente o deslocamento físico e simbólico da perspectiva com que se observa a cena.


Na primeira vez em que aparece, assistimos de longe à cena, como um observador posicionado fora da história, que tem acesso apenas à superficialidade das relações. Há, inclusive, uma barreira propriamente física que separa a câmera da ação: uma “mureta” de pedra que circunda a casa. Já na segunda aparição, uma câmera na mão, o áudio em parte cortado (só ouvimos, ao fundo, o som dos passarinhos e, de forma sutil, o barulho do copo, da cadeira, dos passos da mulher), e a aproximação do enquadramento compõem uma imagem claramente diferente, assim como seus efeitos. Se, por um lado, percebemos a história mais de perto, vemos as expressões e a interação ocorrida naquele espaço-tempo com mais nitidez, a alteração no áudio dá outra estética e significação à cena. Se ela adquire um tom onírico, se ganha maior importância, se é carregada, a partir de então, de um possível imaginário característico da lembrança (já que a memória, ao lembrar, também cria e modifica), cabe ao espectador dizer. O certo é que a cena perde a banalidade que poderia ter, fazendo-nos olhar mais atentamente ao que se passa ali. Há algo, portanto, a ser visto e revisto, lembrado.


Poderíamos fazer suposições: talvez a retirada de Fred(érique), deixando o marido e vizinho pela primeira vez a sós é o início de tudo o que vai se desenrolar a partir de então. Talvez a permanência de Fred(éric) já denunciaria sua mudança de desejo e de postura que vai se acentuar com o passar da história. Afinal, ele estava com dificuldades de ter relações sexuais com a mulher (por disfunção eréctil) e aquela seria uma oportunidade de tentar, mais uma vez, contornar aquele problema. E quando, pela terceira vez, a cena torna a se apresentar, o ponto de vista é destituído de toda e qualquer afastamento e neutralidade. O áudio se restringe unicamente ao som dos passarinhos cantando, ao fundo: é a visão que importa agora. Vemos tudo de muito perto, dessa vez pelo olhar de Hugo. Ele assiste ao beijo de despedida e revela uma expressão de ironia, um sorriso sarcástico, um prazer desconfiado naquela demonstração de carinho. A “perfeição” que aquele gesto simboliza – que nesse ponto do filme nós já o vimos criticar muitas vezes, apontando suas falhas e defendendo a ilusão que de fato representa – começa, assim, a nos causar um estranhamento. Há algo de errado acontecendo. Há algo de trágico por acontecer. Hugo prenuncia com os olhos que aquela perfeição começaria a ruir.




De fato, depois desse plano, os acontecimentos tomam um rumo cada vez mais explícito. Frédérique observa o marido com olhar pensativo, melancólico. Corte. Voltamos à madrugada primeira e vemos Hugo questionar Fred e seus problemas sexuais. Corte. Mais uma vez, marido e mulher têm uma tentativa frustrada de fazer amor. Os personagens entram num caminho sem volta. O casal a dançar tango, duplicando em movimento a pintura afixada à parede do quarto de Frédéric e Fréderique, já não são dois jovens apaixonados, mas dois homens adultos. E a banda continua a tocar sua música, embalando os personagens, dando cadência à história. O tempo passa, a gravidade da crise no casamento dos dois aumenta, Frédérique começa a oscilar entre lucidez e loucura, escancarando sua fragilidade. As insônias de Frédéric se acentuam, ele abandona mais e mais o leito conjugal (que Arthur, seu filho, começa a ocupar), e enfim vemos, seguidamente, à declaração que um e outro se fazem (Fred e Hugo): ao despedir-se, naquela madrugada, após uma conversa que durou mais do que o previsto, Hugo expressa seu interesse por Fred. E esse se revela, por sua vez, quando toma conhecimento da partida do vizinho, indo procurá-lo em frente à boate gay que freqüenta e apenas encostando delicadamente sua cabeça na dele.


Aproximamo-nos do fim. Frédérique, às lágrimas, nua e desesperada, finalmente grita a verdade: “você está apaixonado”. Frédéric assume seu desejo e, na (quase) cena final (já que o filme termina mesmo com os músicos tocando para a câmera), deixa mulher e filho. O que seria um ato indecoroso é mostrado com tamanha sensibilidade e beleza que abandonamos todo e qualquer juízo moral. Evocando a memória do espectador, o ciclo do filme se fecha: o pai, que é despertado pelo filho no começo, que chamado para brincar diz que é indestrutível e inoxidável, carrega a criança de volta para sua cama e a deixa ali dormindo, se desculpando: “Eu não sou inoxidável, eu não sou invencível... Eu voltarei...”.

Filme citado: O homem da sua vida (L'homme de sa vie), Zabou Breitman (2006).

Revisitando um clássico

Por Juliana Galvão

Mesmo quem nunca viu o filme inteiro conhece a icônica cena de Cantando na Chuva na qual um homem sai - literalmente - cantando e dançando na chuva após um encontro bem sucedido. Entretanto, mais do que uma aula de sapateado, o filme é um registro da história do cinema. Mais precisamente de 1927, momento em que a 7ª arte experimentava a transição do cinema mudo para o falado.

Para descrever esse período, Cantando na Chuva abusa de metalinguagens e mistura fatos ficcionais e reais, como na sequência em que alguns produtores comentam sobre o longa O Cantor de Jazz, primeiro filme falado da história, produzido pela Warner Bros. O lançamento desse filme movimenta a indústria cinematográfica e faz com que todos os estúdios invistam em produções. O filme reproduz a agitação da época partindo do fictício estúdio Monumental Pictures, no qual trabalha o famoso ator Don Lockwood (Gene Kelly).

Don e Lina Lamont (Jean Hagen), que fazem par romântico em todos os longas do estúdio, começam a gravar um filme falado, gênero do qual nada entendem. Um dos primeiros problemas é a impossibilidade de usar a voz real de Lina – que é horrível. Esse era um problema comum aos estúdios. Muitos atores tinham voz ou dicção ruins. Para a indústria cinematográfica estadunidense, que vendia filmes pela participação de suas estrelas e não necessariamente pela história que contavam, essa era uma questão essencial.

Outros problemas diziam respeito à inserção de microfones no cenário (ninguém sabia onde colocá-los para não aparecer e ao mesmo tempo captar bem o som do estúdio), à falta se sincronia entre a boca dos personagens e as falas, à preocupação de reproduzir os sons que acabavam exagerados e às inadequações do roteiro. Quando o cinema era mudo os atores mexiam os lábios e muitas vezes falavam coisas que não tinham relação com o filme. Com o som, porém, é necessário ter um roteiro bem estruturado para as falas não parecerem ridículas ou desconexas.

O longa também traz um “apanhado” do pensamento das pessoas à época. Em diversas cenas ouvimos comentários sobre os filmes falados: “são estranhos”, “são ótimos”, “são vulgares”. Alguns achavam que era puro modismo, outros duvidavam que a novidade ia deslanchar. Mais do que mostrar, os diretores do filme sutilmente evidenciam sua opinião por meio dos movimentos de câmera. Sempre que alguém prepara uma crítica ao cinema, a câmera filma de cima para baixo. Ao contrário, durante uma dança ou uma cena de caráter positivo, a câmera filma de baixo para cima, engrandecendo o momento e mostrando ao espectador como o cinema é interessante.

É da personagem Kathy Selden (Debbie Reynolds) que vamos escutar duras críticas à indústria cinematográfica. No filme, Kathy é uma atriz de teatro que vai emprestar sua linda voz à Lina. Ela já havia se encontrado com Don, que se apaixona por ela – provavelmente por ser a única que não caiu no discurso do galã. Em uma conversa com Don ela deixa claro que não o considera um ator, pois só é capaz de fazer caretas e não de atuar.

Ela também diz não assistir a muitos filmes, pois são todos iguais: “Se viu um, já viu todos”. Podemos perceber que apesar das fortes críticas a personagem, na verdade, glorifica o cinema falado com o argumento de que só com as falas a arte está completa. Além disso, ao longo do filme Kathy vai mostrando ser como todas as outras pessoas ao admitir que já viu vários filmes de Don e que lê revistas de fofoca. Ela critica a massa, mas também faz parte dela.

Cheio de metalinguagens, o filme faz uma homenagem a esse momento crucial na história do cinema e mostra todos os problemas enfrentados pelos estúdios até encontrarem a forma mais adequada de produzir filmes falados. Fazer um musical para contar uma história como essa, inclusive, parece uma ironia. O filme está prevendo um futuro aonde os estúdios estarão equipados de tal forma que até uma dança complexa, na chuva, poderá ser filmada, o que de fato acontece quando, ao final do filme, vemos um outdoor com a propaganda do filme Cantando na Chuva. Nesse momento a história se torna cíclica: o filme que está no cartaz é exatamente aquele que acabamos de ver.

Filmes musicais não costumam ser vistos com bons olhos por todas as pessoas. A principal queixa sobre eles é de que são superficiais e não trazem reflexões mais consistentes. Ao contrário, é só sentar na cadeira, se divertir, e sair ainda mais vazio da sala de cinema. Em Cantando na Chuva, ao contrário, o filme trata com sutileza e humor um tema caro à história do cinema. Talvez por isso o filme seja o primeiro na lista dos 25 maiores musicais americanos de todos os tempos, idealizada pelo American Film Institute (AFI).

Em termos de espetáculos musicais, porém, o filme não pode ser considerado impecável. Em primeiro lugar, há cenas não musicadas tão grandes que você esquece que está vendo um musical. Em segundo lugar - e como um movimento inverso - a maioria das músicas dura tempo suficiente para você começar a se inquietar na cadeira e perguntar quando acaba. Além disso, algumas sequências fogem da história principal, como na coreografia em que Don interpreta um homem em busca de um emprego na Broadway.

As coreografias, ao contrário, são o ponto alto do filme. As sequências aonde Don e Cosmo aparecem sapateando são um espetáculo a parte. Fora isso, o primeiro lugar na lista da AFI vale pelo roteiro e pela história do filme. E (por que não) por Gene Kelly cantando na chuva? A música, gravada e regravada inúmeras vezes, já foi até subvertida por Stanley Kubrick no filme Laranja Mecânica, quando o personagem principal aparece cantando Singin’in the rain durante uma cena de estupro e violência.


Filmes citados:

Cantando na Chuva (Singin'in the rain), Gene Kelly e Stanley Donen (1952)

Laranja Mecânica (A Clockwork Orange), Stanley Kubrick (1971)

O Cantor de Jazz (The Jazz Singer), Alan Crosland (1927)

Quando a música vira protagonista

Por Natália Becattini

Trilha sonora é a seleção de músicas usadas em um produto audiovisual. No entanto, em alguns filmes, a trilha deixa de ser apenas um pano de fundo que acompanha a história e se torna aquilo que impulsiona a narrativa. É o caso de Quase Famosos, de Cameron Crowe (2000) e Alta Fidelidade, de Stephen Frears (2000). A música não é simples acessório, algo que pode, muitas vezes, passar despercebido pelo espectador mais desatento. Nestes filmes, ela é uma das protagonistas.


Quase Famosos conta a história de Willian Miller (Patrick Fugit) um garoto que, aos 15 anos, se torna jornalista da maior revista de rock do mundo, a Rolling Stones, e acompanha a turnê de uma banda em ascensão. No percurso, ele conhece a cativante Penny Lane (Kate Hudson), líder de um grupo de fãs que se autodenomina “Band Aids”. Através do olhar inocente e apaixonado do adolescente, o longa retrata de forma nostálgica a história do rock setentista, além de abordar de temas como a relação da música com o consumo de drogas, o endeusamento dos astros do rock e a importância da relação entre fãs e ídolos.

Stillwater, a banda que Willian e Penny acompanhavam, é fictícia, mas bem que poderia ser real. Seus membros tentam se equilibrar na contradição entre viver o idealismo da época, acreditando que o rock n´ roll pode salvar o mundo, e, ao mesmo tempo,ceder à pressão das gravadoras e da mídia, segundo eles, os inimigos que querem destruir a essência da música. A banda, em franca ascensão, não está preparada para lidar com o assédio dos fãs, o endeusamento e as questões burocráticas de ser uma banda de rock. O maior destaque dado a um dos membros em detrimento dos outros causa brigas e disputas de ego que quase levam o grupo ao fim, algo nada incomum na trajetória das bandas.

Para quem conhece um pouco da história do rock, Quase Famosos é quase um deleite. Em algumas cenas é possível encontrar referências claras à biografia dos “dinossauros” dos anos 1970. Quando o guitarrista Russel Hammond (Billy Crudup)sobe em cima do telhado de uma casa e grita “Eu sou o deus dourado” durante uma “viagem” de LSD, é impossível não se lembrar de Robert Plant, vocalista do Led Zeppelin, no topo de um hotel em Londres. Ou quando a banda está a bordo de um avião que ameaça cair e todos os integrantes começam a falar verdades uns para os outros, pensando que vão morrer, a cena fica mais divertida se você sabe que isso realmente aconteceu com o The Who.


Alta Fidelidade, por sua vez, é uma espécie de enciclopédia musical filmada. Está tudo ali: Bruce Springsteen, Bob Dylan, Lou Reed, Velvet Underground, Queen, Elvis Costello, Steve Wonder, Marvin Gaye, Aretha Franklin, Burt Bacharach. Todas as canções foram meticulosamente selecionadas para embalar as crises existenciais do protagonista.

O universo retratado por este filme pode ser menos glamoroso que a época áurea do rock n´roll, porém não menos rico e interessante. Rob (John Cusack) é o dono de uma pequena loja de discos especializada em raridades. Quando Laura (Iben Hjejle), sua namorada, resolve deixá-lo, ele compõe uma lista dos 5 maiores foras de sua vida e resolve procurar suas ex-namoradas para tentar entender porque sempre sofre rejeições amorosas.

As listas de “5 mais” não se limitam às decepções românticas de Rob. Ele e seus dois amigos, Dick (Todd Louiso) e Barry (Jack Black), todos apaixonados por música pop, se divertem fazendo Top 5 de qualquer coisa que passe pelas suas cabeças, desde “5 melhores músicas lado A de todos os tempos” até “5 músicas para tocar no seu enterro”. Mais uma vez, é preciso ter algum conhecimento musical para apreciar este filme em sua plenitude.

Um leigo no assunto pode não entender as referências, rir com as tiradas arrogantes de Barry ou se deliciar com as preciosidades musicais que tocam na pequena Championship Vinyl. Mas ele ainda pode se divertir com umas das (Top 5?) mais inteligentes comédias românticas dos anos 1990. Porque, além de “mapa da mina musical”, Alta Fidelidade escancara o universo masculino expondo todas as fragilidades, inseguranças, neuroses sobre sexo e compromisso e paixões intensas vividas por Rob, que fala diretamente para câmera como se estivesse nos confidenciando seus maiores segredos, deixando-nos ir fundo em sua alma e revelando todos os seus vícios e virtudes.


O que estes filmes têm em comum? Ambos traçam de maneira clara e envolvente um retrato de pessoas que, de alguma maneira, se sentem intimamente conectadas à música. Festas regadas à bebida e drogas e decepções amorosas é que se tornam plano de fundo para dar lugar à fascinação que a 1ª arte exerce sobre nós, seja ela expressa na pergunta sem resposta de Rob, logo nós primeiros minutos de filme (“O que vem primeiro, a música ou o sofrimento? Sou triste porque escuto música pop ou escuto música pop porque sou triste?”), ou no desabafo sincero de uma fã para seu ídolo (“Elas nunca vão saber como é amar tanto uma banda a ponto de doer”).

Qualquer amante de música sabe o poder que alguns acordes têm de mudar completamente o seu humor, ou reconhecer a sensação de quando se tem certeza que uma canção fala diretamente para você. Não importa se você ama Belle & Sebastian ou é apaixonado por Led Zeppelin, se prefere Lou Reed a Rolling Stones, se é uma groupie histérica pulando em um show ou um alguém ouvindo sozinho uma canção em seus fones de ouvido. A música está presente e compõe nossa própria trilha sonora.

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5 Melhores trilhas sonoras da década (até agora):

1 - Eu não estou lá - Trilha por Sonic Youth, Yo La Tengo, Eddie Vedder, Mason Jennings, The Million Dollar Bashers, John Doe

2 - Across the Universe – Trilha por Dana Fuchs, Jim Sturgess, Evan Rachel Wood, Lisa Hogg, Bono, The Secret Machines e outros

3 - Juno – Trilha por Barry Louis Polisar, Kimia Dawson, The Kinks, Buddy Holly, Mateo Messina, Belle & Sebastian, Sonic Youth, Moot the Hoople, Cat Power, Antsy Pants e The Velvet Underground.

4 - O Fabuloso Destino de Amélie Poulain – Trilha por Yann Tiersen

5 - Desejo e Reparação – Trilha por Dario Marianelli

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Filmes citados:

Alta Fidelidade (High Fidelity), Stephen Frears (2000)

Quase Famosos (Almost Famous), Cameron Crowe (2000)

Não Estou Lá (I´m not there), Todd haynes (2007)

Across the Universe (Across the Universe), Julie Taymor (2007)

Juno (Juno), Jason Reitman (2007)

O Fabuloso destino de Amélie Poulain (Le fabuleux destin d'Amélie Poulain), Jean-Pierre Jeunet (2001)

Desejo e Reparação (Atonement), Joe Wright (2007)

A tradução de clássicos da música em Fantasia

Por Nuno Manna

Ao final do interlúdio, os músicos da Orquestra da Philadelphia ressurgem aos poucos, retomando seus instrumentos. O anfitrião do espetáculo, Deems Taylor, avisa que antes de chamar o próximo ato ele nos apresentaria alguém muito importante para Fantasia. Alguém que, segundo ele, é tímido e reservado, mas de uma personalidade cujas possibilidades até então passavam despercebidas. Eis que Taylor anuncia seu ilustre convidado. “Estou muito feliz de apresentar pra vocês: a trilha sonora”. Vemos, então, esse peculiar personagem, uma linha que vibra de acordo com o timbre e a altura de sons. Taylor conclui: “Cada som belo também gera uma imagem bela”. Ainda que essa fala se refira a um momento específico do filme, ela é emblemática no sentido de resumir a relação entre imagens e sons – fundamentalmente imagens e música – em Fantasia.

No cinema, de uma forma geral, é recorrente um tipo de uso da música que lhe confere um papel secundário nos filmes. A música basicamente acompanha a ação, auxilia na construção do ritmo e do clima. Não resta dúvidas que mesmo ocupando esse lugar, existem músicas que, em grande medida, sustentaram cenas antológicas da história do cinema. A valsa das espaçonaves em 2001 – Uma Odisséia no Espaço (Danúbio Azul, de Strauss), o delírio do capitão Willard no início de Apocalypse Now (The End, de The Doors), o duelo de Frank e Harmonica em Era Uma Vez no Oeste (canção-tema do filme, de Ennio Morricone), a seção na barbearia de Chaplin em O Grande Ditador (Barbeiro de Sevilha, de Rossini) e, por que não?, o aquecimento de Alex em Flashdance (Maniac, de Michael Sembello). Em outras situações a música até ajuda a compor o motivo das cenas, sobretudo em musicais. Mas o que os realizadores de Fantasia alcançaram foi algo ainda mais profundo e importante no sentido de chamar a música para o primeiro plano, acabar com a timidez do seu uso e fazer dela objeto de fundação da própria imagem. Voltar ao filme de 1940 e insistir neste ponto que o consagrou, sobre o qual muitos já se debruçaram, além de nos parecer um passo básico para se discutir cinema, é uma forma de reforçar o fato de que, até hoje, Fantasia continua sendo a maior referência nesse tipo de experiência.

Podemos dizer que, de certa forma, o que Walt Disney e seus companheiros fizeram em Fantasia foi traduzir sons para imagens, um movimento de significação de um discurso para outro. Em alguns momentos, essa idéia pode ser vista de forma mais evidente, como na já mencionada “aparição” da trilha sonora convidada pelo apresentador Deems Taylor, onde a pista sonora é reproduzida na pista da imagem. Outro momento ainda mais interessante é a primeira peça do filme, classificada por Taylor como absolute music (música absoluta). Nela, ouvimos Tocana e Fuga em Ré Menor, de Bach, enquanto assistimos a uma dança de imagens abstratas e cores que acompanham a música, como se compusessem seu corpo e seus movimentos. A relação aqui não é mais tão direta quanto à “aparição” da trilha sonora, mas uma representação fluida de possíveis imagens mentais que a música pode produzir. Em outras palavras, a sequência que vemos é algo parecido ao que poderíamos imaginar se escutássemos Bach de olhos fechados. Não por coincidência, a peça do filme é de uma parceria com Oskar Fischinger, artista alemão que fez diversas experiências com música e cinema, convidado por Disney para a grande empreitada de Fantasia. Ao abrir o filme, a peça parece ser um esforço primeiro de tradução, menos “automático” – ou menos “literal” – que o posicionamento da pista sonora na imagética. Ela envolve um belíssimo trabalho de interpretação de Fischinger, e nos proporciona uma experiência transcendente.

Como aponta Roger Silverstone em Por que estudar a mídia?, a tradução não é um processo neutro. A passagem de um discurso para outro parte mesmo de um gesto interpretativo. Silverstone afirma ainda que a tradução é acompanhada por certa agressão, no sentido de que nunca é possível alcançar o todo do discurso inicial. Isso não implica necessariamente em um resultado negativo. No caso de Fantasia, a própria injeção de interpretação é justamente o elemento que torna o filme tão rico. Se na primeira peça temos acesso ao mundo abstrato imaginado por Oskar Fischinger, as demais são ainda mais carregadas de elaboração, partindo para a figuratividade e a narratividade, sempre tendo a música como germe e inspiração – com exceção da peça protagonizada pelo camundongo queridinho da casa, Mickey, cuja história foi escrita antes da música.

Ao introduzir a peça do balé Quebra-Nozes, de Tchaikovsky, Taylor avisa que nós não veremos quebra-nozes algum na tela. “O único lugar onde ele restou foi no título.” O que vemos, então, são pequenas fadas que deixam trilhas luminosas por onde passam, cogumelos que dançam como gueixas, folhas coloridas sopradas delicadamente pelo vento. Sobre a peça com Sinfonia No 6, Taylor conta que Beethoven pintara uma imagem musical de um dia no campo. A peça de Disney ganha feições mitológicas no Monte Olimpo, com unicórnios, centauros e deuses. A Dança das Horas, de Ponchieli, é dançado por avestruzes, elefantes, hipopótamos e crocodilos. Noite na Montanha Calva, de Mussorgsky, inunda o mundo de criaturas malignas, e é rebatido em seguida pela esperança do amanhecer de Ave Maria, de Schubert, em uma das cenas mais bonitas do filme. Um dos grandes méritos de Fantasia é não se pretender traduções “fiéis” das músicas, mas um novo e admirável espetáculo a partir delas.

Fantasia reúne uma coleção de algumas das mais consagradas obras da música erudita. Esperar que tais obras fossem adaptadas com “literalidade” seria de enorme pretensão de seus realizadores e ingenuidade de seus espectadores, uma vez que o objetivo é essencialmente inalcançável. O que o filme faz em seu processo de tradução, principalmente nos momentos de maior densidade interpretativa, é acrescentar mais uma camada plástica à experiência com a música. Por essa perspectiva, partimos de uma experiência pessoal completamente livre de fruição musical com tais obras para uma relação com uma certa mediação que o filme nos oferece.

Nesse sentido, voltamos mais uma vez a Silverstone, que afirma que a tradução, além de envolver agressão, também envolve confiança, ou seja, aquele que traduz confia que seu produto tem valor em relação à obra original. Encarar o desafio de traduzir obras tão consagradas só faz sentido se houver um esforço interpretativo que valha a pena de ser oferecido aos espectadores, que valha a pena a “limitação” da liberdade imaginativa do ouvinte e a circunscrição em imagens concretas selecionadas por Disney. E o que temos em Fantasia é um trabalho tão competente e de tanta beleza que vale a pena se entregar à confiança da interpretação dos realizadores. O resultado, é claro, não é uma fruição alargada da música ou das imagens, mas a de um dispositivo que se formou a partir da relação entre música e imagem – que ainda é cinema, mas que expande os próprios horizontes do que o cinema é, como toda grande obra de vanguarda.


Referência bibliográfica:

SILVERSTONE, R. Por que estudar a mídia? São Paulo: Loyola, 2002.


Filmes citados:

Fantasia (Fantasia), produzido por Walt Disney (1940)

2001 – Uma Odisséia no Espaço (2001 – A Space Oddyssey), Stanley Kubrick (1968)

Apocalypse Now (Apocalypse Now), Francis Ford Copolla (1979)

Era Uma Vez no Oeste (Once Upon a Time in the West), (1968)

O Grande Ditador (The Great Dictator), Charles Chaplin (1940)

Flashdance (Flashdance), Adrian Lyne (1983)