3 de dez. de 2009

Páginas na tela: a adaptação literária no cinema

Por Ana Flávia Oliveira



Tensões entre o cinema e a literatura sempre existiram e sempre vão existir. Isso porque muitos encaram o livro como uma espécie de “sinopse bem desenvolvida” e insistem na idéia de fidelidade completa do filme em relação à obra literária.

É preciso pensar, no entanto, que a literatura e o cinema constituem dois campos que, apesar de dialogarem, possuem possibilidades expressivas e estéticas diferentes. Devem ser respeitadas as características peculiares de cada meio – cinema e livro – e lembrar que elas não se reduzem apenas as diferenças entre linguagem escrita e visual, mas àquilo que é próprio de cada um deles.

O texto literário estabelece com o leitor uma relação individual, íntima e afetiva. Além disso, tem como matéria-prima as palavras e sua ambigüidade. O cinema, ao contrário, é uma experiência quase sempre coletiva e tem como matéria prima a objetividade das imagens, articuladas ao som e a montagem. Todos esses aparatos próprios do cinema irão trazer modificações ao texto literário quando adaptado as telas. O que acontece é que os leitores esperam que aquela relação que se teve com a leitura seja transportada para o cinema, o que não acontece. O sujeito precisa, então, criar outras relações afetivas e isso lhe causa estranhamento.



O iluminado, filme de Stanley Kubrick adaptado de um romance de Stephen King, por exemplo. O diretor partiu de um ícone do horror, que já havia vendido milhares de cópias e que já tinha um público fiel satisfeito com a atmosfera de terror criada pelo livro. Kubrick, no entanto, resolveu fazer algo que não fosse uma mera reprodução filmada do romance.

O longa agradou aos cinéfilos e desagradou aos fãs de King. Os que eram a favor de Kubrick ressaltaram a técnica do cineasta para contar a história. Aqueles que preferiam a obra original disseram que o filme cortou partes essenciais da trama – com a questão do Iluminado, tratada de raspão– e que o longe trouxe um viés muito sugestivo. Kubrick retirou todos os monstros do longa – deixando apenas alguns no final – e preferiu se concentrar na degradação psicológica dos personagens causada pelo ambiente e não totalmente pela sobrenaturalidade.

Outra questão que envolve as adaptações da literatura para o cinema é o estilo. Da mesma forma que os escritores possuem um modo próprio de escrever, também assim acontece no mundo do cinema. Ainda que pautados nas obras literárias, os diretores imprimem na película suas crenças, seus objetivos e seu estilo. Sendo assim, é possível ao cineasta interpretar, se apropriar e criar outros sentidos para aquele texto. Ele pode ser completamente fiel àquilo que está no livro ou pode utilizá-lo como inspiração e criar, a partir desse pano de fundo dado pelo texto literário, algo completamente novo. A adaptação será feita tendo em vista aquilo que o cineasta deseja expressar. Além disso, deve-se entender que escritor e cineasta têm sensibilidades e propósitos completamente diferentes.



A fogueira das Vaidades, de Brian De Palma, é um bom exemplo, sendo considerado por alguns críticos como uma anti-adaptação. O filme se baseia no livro de Tom Wolf, que buscava criticar os costumes estabelecidos nos anos 1980, década do advento dos Yuppies - executivos de grandes corporações ou do mercado de ações que enriqueceram rapidamente – de Wall Street. A polêmica já começou com a escolha do elenco, principalmente pela opção de Tom Hanks para interpretar Sherman McCoy. O próprio autor do livro, Tom Wolf, criticou a adaptação, alegando muitas mudanças de personagens (como, por exemplo, a transformação do juiz White, que no livro era judeu e no filme passou a ser negro). Além disso, alguns críticos alegam que De Palma transformou o livro numa comédia, “eliminou toda a crise existencial do anti-herói e transformou o cínico jornalista inglês que era a ‘consciência’ do livro, no próprio autor dele” (Contracampo).

Ao se olhar para as adaptações, deve se ter em mente que é o escritor quem possui um compromisso com o leitor e não o cineasta. No entanto, existem aqueles que fazem suas adaptações totalmente voltadas aos leitores. Senhor dos Anéis, por exemplo. O diretor Peter Jackson comunicou-se com os fã-clubes de Tolkien para que o longa não desagradasse a ninguém. O resultado foi um filme que satisfez bastante os apreciadores de Senhor dos Anéis – um público que, diga-se de passagem, já estava pré-disposto a gostar do filme –, mas que, no entanto, pode não ter sido tão agradável àqueles que não eram fãs do livro ou que gostariam de ver um lado mais original de Jackson.

Para fazer os filmes da saga Harry Potter, J.K. Rowling, autora do livros do bruxinho,  inspecionou toda a feitura dos filmes. Mesmo assim, o último filme lançado, Harry Potter e o enigma do Príncipe, não agradou tanto aos fãs, mesmo se mantendo bastante fiel ao livro. Esse é um risco – de não agradar aos fãs do livro - que os cineastas sempre irão correr ao fazer adaptações, pois como já foi dito, cinema e literatura trazem duas experiências completamente distintas.

Talvez seja melhor que o cinema tente ser ele mesmo de forma plena e não tentar ser literatura. Não se está dizendo que não se devam fazer adaptações. O que se deseja que é que, ao trazer textos literários para as telas, se possa fazer com liberdade e criatividade. Caso contrário o cinema pode perder aspectos preciosos de sua natureza e acabar ficando num meio termo – não sendo nem cinema, nem literatura.

Referências bibliográficas:

CURADO, M. E. . Literatura e cinema: adaptação ou tradução?. Temporis(ação) (UEG), v. 1, p. 101-117, 2008
http://www.contracampo.com.br/47/fogueiradasvaidades.htm (acessado em 3 de dezembro)
http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=237 (acessado em 3 de dezembro)

Filmes citados

O iluminado (The shining), Stanley Kubrick (1980)

Harry Potter e o enigma do Príncipe (Harry Potter and the Half-Blood Prince), David Yates (2009)

A fogueira das vaidades (The bonfire of the vanities), Brian de Palma (1990)

Senhor dos anéis (Trilogia) (The Lord of the Rings), Peter Jackson e Fran Walsh (2001, 2002 e 2003)

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