3 de dez. de 2009

As Memórias de Woody Allen

por Clarissa Vieira


No início vemos um homem sentado em um vagão ferroviário com uma expressão um pouco aflita. No vagão, junto com ele, estão pessoas estranhas, figuras exóticas. Um homem chora copiosamente ao seu lado. Um primeiro plano mostra um maquinista sisudo. O homem olha para fora e, no vagão ao lado, todos se divertem, riem bastante, uma linda mulher lhe manda um beijo e o barulho predomina. No vagão de nosso protagonista apenas o silêncio, a estranheza e o barulho de um relógio. O trem parte e o homem se desespera para saltar do vagão. Bate nas janelas, puxa cordas e tenta abrir as portas. Tentativas em vão. Na próxima cena vemos todos os passageiros em um lixão cheio de urubus. Tanto os que estavam no vagão melancólico quanto os que estavam no vagão em que a euforia predominava. A tela fica então escura e a projeção se encerra. Trata-se do novo filme de Sandy Bates (Woody Allen), cineasta em crise e protagonista de Memórias (Stardust Memories, Woody Allen, 1980).

Memórias tem início no final de um filme não bem recebido. Em meio a várias frases de críticos mordazes, se ouve “Eu achei horrível! Simplesmente horrível.” “Eu achei que era para ser uma comédia, é a pior coisa que já vi!” “Ele não sabe que tem o maior dom de todos, o dom do riso?”. É assim que adentramos o mundo das memórias e da, sempre fértil, imaginação de Woody Allen.

É freqüente ouvir que Memórias se trata de uma cópia do filme de Federico Fellini, 8¹/² (8¹/², Federico Fellini, 1963). Não há como não notar o diálogo que existe entre eles e a inspiração de Woody Allen nas lembranças em preto e branco do diretor italiano. O cineasta nova-yorkino é fã confesso do cinema de Fellini e, várias vezes, já assumiu seu encantamento pelo mundo exótico e onírico presente em vários de seus filmes. No entanto, Memórias passa longe de ser cópia de qualquer outro filme. A presença de Allen perpassa cada plano. O filme é Woody Allen de corpo, alma e memória!

Federico Fellini realizou 8¹/² após ganhar o Oscar como melhor diretor em 1960, por A doce vida (La dolce vita, Federico Fellini, 1960). Em seus escritos e entrevistas, conta das dificuldades que encontrava para realizar qualquer outro filme depois do reconhecimento internacional. Foi a partir da crise que teve a idéia para seu “oitavo e meio filme”. Seu protagonista, o cineasta Guido, encontra-se numa crise profissional e pessoal. Sandy Bates também é inspirado em seu diretor. No final da década de 1970, Woody Allen já havia sido reconhecido como um diretor interessante e com um toque bastante autoral, sobretudo no que dizia respeito a filmar comédias inteligentes. No entanto, sua primeira tentativa de filmar um drama com inspiração bergmaniana (Interiores, Interiors, Woody Allen, 1978) foi um fracasso de crítica e público. Sandy Bates é completamente atravessado pelas questões do próprio Woody Allen.

Assim como em 8¹/², Memórias acompanha um diretor de cinema em crise com seu ofício. Como o Guido (Marcello Mastroianni) de Fellini, Sandy Bates não sabe mais o que fazer com seu cinema. Quer fazer dramas, “Tudo o que eu vejo em volta é sofrimento humano”, diz ele, mas todos insistem que suas comédias antigas são muito melhores. Há sempre alguém querendo dar um palpite. Ele sofre cobranças da crítica, dos fãs, de amigos, amantes, mas, sobretudo, dele mesmo. Em seu apartamento, bizarramente decorado com grandes fotografias em preto e branco, seus produtores, seu agente e sua secretária insistem que ele deve comparecer ao fim de semana que está sendo preparado por uma famosa crítica de cinema para homenageá-lo. O evento acontecerá em um hotel no litoral. Essa viagem dará início a uma rememoração pessoal do protagonista que se mostra no filme por um belíssimo entrecruzamento de realidade, memórias e imaginação.

Com a saída de todos, Sandy encontra-se só na sala de seu apartamento. Ele olha para fora da janela e então ouvimos uma voz que vem do fora-de-campo: “Em que está pensando quando você olha para lá?”. Sandy responde e aproxima-se de Dorrie, uma complicada e bela mulher que havia sido um grande amor no passado. De uma hora para outra, ela aparece ali, do seu lado, e os dois conversam amorosamente. Ouvimos então um alarme que soa alto e de outro ângulo percebemos o personagem que ainda olha sozinho para o mundo lá fora. Sem cortes ou flash-backs, Sandy rememora Dorrie. É confuso e o espectador fica um tempo sem entender já que, durante a viagem, Sandy se lembrará de Dorrie como alguém que já não está mais com ele. Mas ela não estava ali, na sala de seu apartamento? Era apenas uma lembrança, um desejo do protagonista que surge no filme assim, despretensiosamente.

Em muitos momentos a memória será evocada dessa forma no filme de Woody Allen: através de belas seqüências que só depois descobrimos se tratar de uma lembrança ou imaginação do personagem por estarem imbricadas nos outros planos. Acompanhamos uma cena como se ela estivesse de fato acontecendo e, de repente, através de um corte da montagem (e algumas vezes mesmo sem ele), podemos descobrir se tratar de uma lembrança, talvez um sonho, imaginação ou mesmo outro filme do diretor protagonista. A metalinguagem é marcante em Memórias e crucial para dizer da memória do personagem e do próprio diretor. Woody Allen parece nos falar que suas lembranças também são atravessadas pelos filmes, reais e imaginados. E isso é bem possível, pois o cinema faz parte de sua própria história de vida.

A bela fotografia em preto e branco de Gordon Willis desempenha um papel importante na busca da figuração das lembranças. O universo da memória é, na maioria das vezes, confuso e pouco distinto. As tonalidades do filme e alguns planos em lugares escuros nos remetem a esse lugar abstrato e onírico dos pensamentos e rememorações. Nada é muito claro quando tentamos nos lembrar de momentos passados e épocas vividas. Igualmente interessante para dizer da confusão que envolve o lugar das memórias é a presença, no filme, do absurdo e de imagens que, talvez, poderíamos chamar de surrealistas: “Você pode me dar um autógrafo?” um fã pede a Sandy Bates, e completa: “Eu nasci de cesariana.”. Ou como no momento em que Sandy fica nervoso quando uma fã invade seu quarto para que eles durmam juntos e vemos, em seguida, uma cena em que um grupo de homens em companhia de Sandy tentam capturar sua “raiva” que havia escapado. A raiva é um mostro peludo que está à solta assassinando várias pessoas. Ela é, então, encontrada com a mãe de Sandy nos braços, a próxima vítima.



Dessa maneira, Memórias segue, a cada plano, mostrando a dificuldade que temos de rememorar nossa vida e os momentos que se já se foram e também para dar vazão a sentimentos e sensações não expressas, principalmente quando passamos por momentos de crise e questionamentos, como acontece com Sandy. É preciso imaginar para lembrar; criar metáforas mentais absurdas para conferir sentido a alguns acontecimentos ou sentimentos.

O uso da câmera subjetiva é também um ponto importante de Memórias. Várias vezes observamos o que o personagem vê: pessoas estranhas, figuras exóticas claramente inspiradas nos personagens fellinianos, um mundo vazio, por vezes sombrio. Essa possibilidade de olharmos através dos olhos do protagonista possibilita um acesso à subjetividade do personagem: talvez as coisas sejam diferentes, mas as vemos pelo olhar de um diretor atormentado por suas próprias questões.

Essas imagens do absurdo que conferem certo sentido ao real e metaforizam o estado do personagem atravessam todo o filme: Sandy vê, por vezes, cenas de sua infância. O garoto que ele foi anos atrás está no jardim pelo qual está passando ou fazendo mágicas no bar em que ele conversa com alguns conhecidos. Uma dessas cenas é particularmente bela: da janela de uma lanchonete, Sandy vê um grande elefante na praia. Junto ao elefante, ele se vê garotinho abraçando sua mãe em agradecimento pelo inusitado animal de estimação como presente. Sua mãe, no entanto, é Dorrie, o amor de anos atrás, o que nos lembra a bela cena de Fellini em que a mãe de Guido o beija apaixonadamente e se transforma, com um corte, em sua mulher. O garotinho, então, sai para o fora-de-campo para voltar como Sandy, já mais velho, que agradece um belo presente que Dorrie lhe dera. Os dois saem caminhando pela praia e Sandy conta a Dorrie sobre o presente que sempre quis quando pequeno: um elefante. É maravilhoso, pois em uma breve cena, vários aspectos da vida e das relações do protagonista estão presentes com uma metáfora. Dorrie havia sido como uma mãe? O presente que ela lhe dera traz uma questão da infância?

Com inspiração felliniana, Memórias é, sobretudo, um filme de e sobre Woody Allen. Não há como deixar de notar que Sandy é uma condensação das questões que atravessavam os pensamentos do diretor à época de realização do filme. Está tudo lá: a infância, as questões com a mãe, a psicanálise, os amores, o jazz, as escolhas e os dilemas como cineasta, a tentativa de se tornar menos engraçado diante de um mundo tão cruel. Todas essas são questões allenianas.

É no início mesmo do filme que Woody Allen introduz um elemento que diz da marca autoral de Memórias: dentro do vagão do qual Sandy Bates procura fugir desesperadamente soava um barulho de um relógio e havia, no bagageiro, uma mala que derramava areia como uma ampulheta que marca o tempo. Não podemos deixar de pensar na questão menos pessoal e mais existencial de Sandy/Allen, dessa vez contrastante com a de Guido/Fellini: o tempo urge, o universo está se decompondo (como Sandy afirma em uma das cenas com seus produtores) e a humanidade sofre. “Se nada dura, por que eu ainda faço filmes, ou por que faço qualquer coisa? pergunta ele aos alienígenas que surgem ao final do filme. “Nós gostamos dos seus filmes”, respondem eles. “Principalmente as comédias antigas”. Depois de algumas outras perguntas, Sandy diz: “Mas eu não deveria parar de fazer filmes e fazer algo importante como ajudar os cegos, ou virar um missionário, algo assim?”. Ao que o alien responde: “Deixa eu te falar uma coisa. Você não faz o tipo missionário. E você também não é o Super-homem, você é um comediante. Quer fazer à humanidade um grande favor? Conte piadas mais engraçadas!”. Sandy então desabafa: “Sim, mas preciso achar um sentido para tudo isso!”. A belíssima melodia de Glenn Miller fecha o diálogo e podemos assim pensar: simplesmente não há sentido para isso tudo. Um artista procura dar sentido através de sua arte e essa é também uma forma de transformação.


Filmes citados:

8¹/² (8¹/²), Federico Fellini, (1963)
A doce vida (La dolce vita), Federico Fellini, (1960)
Interiores (Interiors), Woody Allen, (1978)
Memórias (Stardust memories), Woody Allen, (1980)


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