3 de dez. de 2009

Memória e Morte em Morangos Silvestres de Ingmar Bergman

por Thalita do Carmo Gonçalves






Uma curiosidade natural humana é a morte. Muitos são os relatos e as hipóteses sustentadas a respeito. O cinema não distante, se apresentando como amplo espaço de discursão e arte, tem várias obras relacionadas. Talvez, o interessante não seja a conclusão, mas sim, questionar posturas e embarcar na nostalgia que a proximidade da morte evoca. Nesse sentido, o cinema de Ingmar Bergman é muito rico e metafórico. Para ilustrar a beleza que essa arte imprime aos dilemas da existência humana, esse texto se propõe a buscar os lugares da memória e da morte no filme Morangos Silvestres.

Morangos Silvestres conta momentos marcantes da vida de Isak Borg, um homem bem integrado na sociedade, capaz e disciplinado, um profissional conceituado na carreira, pai de um filho e já viúvo. Isak, que é médico e professor aposentado, é chamado à cidade de Lung para receber uma homenagem pelos seus cinquenta anos de profissão. Assustado com um sonho prefere ir de carro. A opção pelo carro é recheada de simbolismos e possibilidades, já que o carro é um local neutro e que, por estar em constante deslocamento, permite contemplação, reflexão e mudança.

Receber uma homenagem evoca um profundo processo de auto-avaliação e Bergman se aproveita dos 78 anos do personagem para propor que viessem a tona vários medos escondidos na memória. Os diálogos realizados no interior do veículo, durante a viagem, são ricos, reveladores e definem aparências sociais, medos, problemas conjugais e de personalidade. Quem o acompanha na viagem é a nora, que está mais interessada na carona do que na compania do sogro. Além dela, durante o trajeto, surgem outros caroneiros, primeiro três jovens e depois um casal.

O encontro com a morte é evocado em vários momentos, mas o principal e mais marcante se dá num sonho. Isak vê um caixão cair de uma carruagem (uma homenagem explícita e assumida ao filme A Carruagem Fantasma de Victor Sjöström), o caixão cai aberto e um braço fica estendido para fora, Isak se aproxima e é agarrado pela mão que se revela sua: o morto é seu próprio reflexo implorando por auxílio para sair dalí. Então, a partir dessa imersão, o filme, por meio de muitas coincidências e pequenos detalhes, explora a memória e a proximidade com a morte.

No caminho para receber a homenagem, Isak visita a casa em que viveu sua infância, sua adolescência e também sua primeira desilusão amorosa. Tão logo, encontra os três jovens caroneiros, que o remetem ainda mais à sua juventude e ao seu amor perdido, já que Sara, a garota da turma, tem o nome e a aparência da moça que o abandonou.




Durante a viagem, a morte aparece mais uma vez, quando por pouco não acontece um grave acidente de carro. Nesse incidente, um casal, que se relaciona com extrema hostilidade, invade a história, trazendo desconforto e fazendo emergir memórias ruins, tanto de Isak, sobre sua falecida esposa, quanto da nora Marianne, sobre seu difícil relacionamento com o filho de Isak.
Observando a estrutura da narração, destacam-se duas técnicas de memória: cut-back (voltar ao passado para situar o presente) e cut-off (deixar suspenso, sugerir). A cut-off geralmente se apresenta mais rica de significados, ao deixar uma sugestividade e por induzir o espectador a formar conectivos que dêem conta de interpretar o que os planos-seqüência propõem. Cabe ressaltar aqui, a subjetividade inerente a composição dos filmes que relacionam memória e morte, já que eles são construídos, por excelência, em cima da idéia da memória e da reconstituição de uma realidade vista de modo particular.

O personagem visita as verdades de seu passado e tenta exorcizar os fantasmas que ainda assombram sua memória. Família, religião, amor e profissão são postos sobre a ótica de uma realidade desconhecida, mas ao mesmo tempo pessoal, já que Isak busca rever pessoas que ama e tenta encontrar as respostas que inconscientemente já tem. A viagem, então, pode ser comparada a um purgatório, no qual Isak vasculha a memória angustiado por não saber se seu comportamento foi digno do céu ou do inferno.

Uma metáfora bastante pertinente é proposta quando repetidamente o céu ou seu reflexo é mostrado. Essa visão certamente flutua num interdiscurso com o universo religioso, onde muitas vezes o céu se pretende como “um lugar para ser feliz”, trata-se do lugar-comum amplamente divulgado como objetivo final e feliz de todas as vidas. Essa percepção é reforçada quando Isak, em seus sonhos, contempla demoradamente o céu.

As lembranças geram sensações tão fortes e vívidas que lhe parecem reais. Ele chega a dizer que algo o incomoda nesses sonhos e imagens, afirma que ficam chateando sua cabeça incansavelmente. Nesse ponto da narrativa, Bergmam faz algo realmente inusitado, uma fusão com imagens de pássaros voando e granando alto. Bergmam cria uma atmosfera que antecipa em seis anos o terror dramático que Hitchcock explora tão bem em Os Pássaros.

A câmera durante a maior parte do filme persegue o movimento da cena. No princípio, é até interessante, mas o uso contínuo desse recurso fica cansativo e gera um desconforto, visto que sugere uma perseguição nem sempre necessária a cena. Morangos Silvestres acerta em retratar o medo da morte através de sonhos surreais e objetos como o relógio sem ponteiros, mas peca no áudio. Os cortes abruptos do som ambiente, denigrem bastante o filme, já que não há pretensão, pelo menos não claramente, de um efeito estético ou narrativo, nem mesmo quando o personagem está em estado onírico.

No conjunto da obra, Ingmar Bergman deixa sua marca e acrescenta ao universo do cinema mais uma maneira de retratar a morte. No entanto, o mérito desse diretor e roterista extravassa ao conseguir dar leveza aos temores decorrentes do desconhecido e ao transformar um personagem ranzinza e mal humorado em carismático e digno de simpatia.

Citações:

A Carruagem Fantasma (Körkarlen, Suécia, 1921, dirigido por Victor Sjöström).
Os Pássaros (The Birds, EUA,1963, dirigido por Alfred Hitchcock)

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