3 de dez. de 2009

Violência plena em Touro Indomável

Por Terêncio de Oliveira



Giacobbe LaMotta nasceu em um bairro pobre na periferia de Nova York, frequentou alguns reformatórios estadunidenses, e foi criado por um pai que o obrigava a lutar com outras crianças na rua para entreter adultos, que atiravam moedas que ajudavam a pagar o aluguel. Robert De Niro leu a autobiografia dessa pessoa e convenceu Martin Scorsese a dirigir um filme sobre ela. Scorsese simplesmente ignora essas informações e começa a contar a história exatamente desse ponto em diante, quando Giacobbe se torna Jake, boxeador profissional. Seria uma escolha até mesmo natural fazer um filme procurando explicações sociológicas para a transformação de um ser humano em um touro raivoso. Esse estilo de biografia, em voga no cinema nacional mais recente: Dois Filhos de Francisco (2007) conta a história de seus biografados até subirem ao palco, Lula, o Filho do Brasil (2009) conta a história do presidente até ele subir ao palanque, caracterizado por aquele estilo de fim: “o resto é História...”

Touro Indomável (1980) começa onde começa a história de um dos boxeadores mais famosos de todos os tempos, Jake LaMotta, que começou a lutar profissionalmente em 1941, aos 19 anos. Ainda assim, mais do que fidelidade aos fatos, o filme busca retratar o personagem baseando-se nas memórias que ele tinha de si mesmo, da própria história que viveu, dos lugares em que esteve, das pessoas que o cercavam. As cenas de luta são bons exemplos. Em determinada luta, LaMotta estava perdendo, quando subitamente passa a ganhar. As lembranças dessa luta, quando recuperadas anos mais tarde, são reelaboradas num processo em que não se distingue memória e imaginação, e a luta é filmada como um massacre total, em que LaMotta parece mais morto do que vivo, incapaz de sustentar o peso das próprias luvas. Um simples esquivo, um dos golpes do adversário atinge o ar, e inicia-se o renascimento épico do lutador, que liberta toda sua fúria, antes perfeitamente escondida sob o disfarce de saco de pancadas, e aniquila o adversário indefeso em segundos. A dor é momentânea, a glória é para sempre, diria George Best, figura muito semelhante ao boxeador nova-iorquino, um dos melhores jogadores de futebol da história, de vida pessoal conturbada, envolta em escândalos sexuais e alcoolismo. Nas memórias de LaMotta, toda a dor, física e emocional, causada por seus adversários ou por sua própria impulsividade, não apagam o fato de que ele conseguiu seu cinturão, seus dias de glória.


A violência no filme também é exacerbada por uma estética menos realista, influenciada pelo mito criado a partir daquele lutador, de seus confrontos com seu grande adversário, Sugar Ray Robinson. O tempo para, o mundo se silencia, o universo se expande (e estas não são apenas metáforas exageradas, são recursos cinematográficos efetivamente utilizados: o golpe é preparado e desferido em slow motion; o som ambiente do ginásio desaparece; a câmera, que representa o ponto de vista de LaMotta, amplia seu campo de visão e constata que não existe mais nada além daquele ringue, daquele adversário, da iminência daquela derrota), toda uma solenidade para que transcorram intermináveis segundos da mais pura e genuína violência. Tudo isto para que o touro indomável lembre seu adversário de que ele conseguiu vencer, mas não conseguiu derrubá-lo. A violência latente de Jake LaMotta não se manifesta apenas como algo que se pratica, mas também como algo que se sofre, algo que se suporta, com o que se convive. E ele convive com ela tão de perto quanto nós, espectadores, que não temos a porta fechada em momento algum. Temos sempre uma câmera recolhendo cada gota de sangue em plano fechado, ultrapassando o limite de segurança da jaula.

Touro Indomável é violência plena, em estado puro, sem guerra, sem uma arma de fogo sequer. A violência que se materializa nas próprias mãos de um animal feroz, independente de qualquer planejamento, razão, estratégia ou controle. O que vemos é um esportista? Há alguma tática, alguma técnica no Jake LaMotta do filme? É claro que alguns poucos entendidos vão elogiar De Niro por reproduzir fielmente o estilo de LaMotta, que afinal não era um grande boxeador por acaso. De Niro movimenta a cabeça no sentido do golpe que recebe, amortecendo seu impacto, assim como se mantém sempre perto de seu adversário, sem lhe dar espaço, tal qual fazia LaMotta. Para os leigos, há apenas raiva, selvageria, demonstração vulgar de poder, nada mais elaborado que isso. É desse modo como Jake LaMotta ficou lembrado, animalesco, indomável e em preto e branco. Como um astro dos anos quarenta, sua imagem ficou gravada no imaginário popular através da imagem da TV e do cinema que transformavam o vermelho das luvas e do sangue em tons de cinza. O Jake LaMotta da vida real, em cores (como toda vida real), não era o verdadeiro, o famoso lutador que Scorsese assistia quando criança, em preto e branco. A realidade das cores é reservada justamente à sua vida pessoal, auto-documentada em filmes caseiros.

LaMotta encerrou sua carreira em 1954, no mesmo ano em que Marlon Brando estrelou Sindicato de Ladrões, com um personagem que se lamentava do fato de que “poderia ter sido um lutador, poderia ter sido alguém, ao invés de um vagabundo, que é o que” ele era. Quem poderia se identificar mais com aquele filme, com a fala daquele ator que, por ela, ganhou um Oscar, assim como De Niro ganhou por LaMotta? Jake poderia ter sido um vagabundo, e como poderia. Mas foi o campeão, e viveu para contar sua história, preso, decadente, abandonado, mas havia sido um lutador.



Filmes citados:
Touro Indomável (Raging Bull), de Martin Scorsese, 1980
Sindicato dos Ladrões (On the Waterfront), de Elia Kazan, 1954

Nenhum comentário: