3 de dez. de 2009

Adaptações ideológicas em quatro versões de "A Onda"

Por Otavio Oliveira



Diante do Fürher, membros da Onda fazem a saudação. Crédito: Divulgação.

Ao som de Rock n’ Roll High School, dos Ramones, um professor de educação física cruza a cidade em seu carro, rumo à escola secundária onde leciona. Dentes irregulares, cabeça raspada e atitude desobediente e anárquica são as primeiras características que se nota a respeito de Rainer Wenger, futuro líder de um movimento totalitário, fascista e manipulador. O personagem e o contexto ficcional em que ele está inserido surgem como a maneira mais interessante (carregada de mea culpa) e objetiva de contar uma história nascida 40 anos atrás, cujas raízes se enterram e se escondem sobre superfície da história alemã, européia e mundial.

Muito embora o totalitarismo nazifascista – nascido na Europa na década de 30 com o objetivo de sugerir uma superioridade ideológica baseada em características raciais, de gênero e religião – seja considerado, hoje, condenável e irracional pela sociedade, líderes e ideologias muito atuais nos fazem enxergar que 80 anos fazem muito pouca diferença. Nesse contexto, o mundo ocidental enxerga no espelho formas saudáveis que superaram a vitimização por ataques terroristas e a culpa pelo imperialismo desonesto e bombas atômicas. O pequeno fascista adormecido dentro de cada cidadão comum, que desperta com o barulho dos mais tolos estímulos de propaganda e falsos sentimentos de pertença, é o tema que emerge do mise-en-abyme que são as quatro versões da Onda.

Palavras repetidas

Em 1967, o professor de história Ron Jones propôs aos alunos do ensino médio de uma escola em Palo Alto, na Califórnia, um experimento de vivência fascista. O mote era o questionamento dos alunos acerca da inconsciência e da inércia dos cidadãos alemães não ligados ao Partido Nazista em relação ao Holocausto. Para provar como a manipulação das massas (nas palavras de Adorno, uma “psicanálise às avessas”) funcionava, o professor criou um regime ideológico intitulado “A Terceira Onda”, do qual ele próprio era o líder. O ideal comunitário em detrimento do favorecimento individual e o sentimento de pertença a um grupo forte e unido (embora sem propósito definido) fascinaram a maioria dos alunos menos atentos, que nem mesmo puderam perceber a manipulação a qual se sujeitavam. O movimento se alastrou e, antes que pudesse fugir ao controle de Jones, ele convocou todo o grupo para apresentar um novo líder. No auditório da Cubberley High School, mostrou aos presentes um vídeo com imagens de Hitler. A figura do líder nazista foi um choque de realidade para os envolvidos com A Terceira Onda, que perceberam, por fim, os propósitos metodológicos e didáticos do professor.

Por meio dos relatos e reportagens da época, é difícil estipular quais as verdadeiras dimensões do experimento de Ron Jones e mais ainda os impactos ideológicos sofridos pelos alunos, que deviam ter entre 16 ou 17 anos. Entretanto, com as primeiras adaptações ficcionais do acontecimento, temos como base alguns personagens chave que se repetiram, mesmo que adotando certas características diferentes ao longo dos anos.

Seis anos depois, Ron Jones escreveria um ensaio no qual os impactos da Onda eram colocados em questão. Baseado nos escritos do professor, Johnny Dawkins idealizou, em 1981, um especial educativo para TV que foi, anos mais tarde, distribuído mundialmente. Didático, leve e moralista, A Onda (The Wave) (veja o filme online, pelo Youtube) não poderia se adequar melhor às circunstâncias para as quais fora criado: suscitar, nas escolas americanas, alguma reflexão superficial sobre o totalitarismo e a importância da individualidade (conveniente) ao modelo americano, livre de qualquer culpa, pelo menos nesse “incidente histórico”.

O telefilme tem tons pastel, é repleto de máximas e frases-feitas, e didático ao extremo, tal qual fora, decerto, o método do professor Ron James. O professor-modelo Mr. Ross usa um suéter marrom sobre sua camisa de gola enquanto ensina a lição de moral anti-nazista por linhas tortas, interpretadas de maneira equivocada por grande parte da turma.

No mesmo ano, Morton Rhue (pseudônimo de Todd Strasser) baseou-se no telefilme de Dawkins para escrever A Onda. Nas cento e vinte páginas, Rhue reconta a história de Jones e Ross, com os mesmos personagens e diálogos do especial educativo de TV. O ideário moralista que, vale repetir, serve como uma luva à sociedade estadunidense que insiste na auto-reflexão como redenção histórica, permanece nesta terceira versão.

A história do professor chegou aos palcos, competindo com outras reviravoltas morais incitadas por outros professores na história da ficção norte-americana das últimas duas décadas. Às vésperas do aniversário de 70 anos do fechamento dos últimos campos de concentração nazistas na Europa, o cinema alemão decidiu remexer na ferida e expurgar demônios da hipocrisia histórica. A Onda (Die Welle), filme de 2008, recria a história.

Ainda que fosse repleto dos mesmos vícios moralistas das versões anteriores, A Onda já sairia na frente, na comparação, pela virtude de duas mudanças radicais: o cenário, desta vez, é a própria Alemanha, mesmo país que viu surgir o nazismo, onde a pergunta “Onde é que estavam os outros alemães enquanto os nazistas exterminavam milhões de pessoas inocentes?” reverbera mais intensamente. A segunda mudança está na figura do professor. Rainer Wenger não é nem de longe o professor modelo. Bem mais fácil e cômodo acusá-lo de manipular jovens inocentes do que apontar o dedo para um professor engomado como Mr. Ross.


Á esquerda, o engomado Mr. Ross em A Onda (1981); à direita, o Fürher Wenger em A Onda (2008). Crédito: Divulgação.


Emulação branca

O diretor alemão Dennis Gansel aproveita bem o tempo que tem para desenvolver a história complexa e delicada de A Onda. O filme tem 107 minutos, contra 45 da primeira versão para a televisão. O tempo do telespectador, porém, é mais incômodo na versão germânica que na história estadunidense. São mais claras as nuances de cada personagem, além da inserção de novos conflitos secundários e uma rede de relações humanas tratadas de maneira mais profunda.

A desobediência civil, a extrapolação dos limites de uma ideologia sofista (cuja única força motriz é a própria ideologia) e as características fascistas do movimento que vão criando raízes na mentalidade dos estudantes colorem de vermelho a monocromia branca que o filme se torna a partir do segundo ato. A Onda de Gansel em maiores proporções do que a de Rhue e Dawkins. Atinge toda a cidade, mexe com as estruturas familiares e desafia as autoridades. A figura de liderança de Wenger é questionada, sua onisciência é colocada em xeque, ele próprio fraqueja e se contradiz, ora foge da culpa, ora a assume. Pela sua oscilação, ele não é poupado, ao contrário do professor da outra versão.

Interessante perceber, ainda, que, embora a reflexão sobre o nazismo tenha inspirado Wenger (assim como o professor Ross e o próprio Jones, o original), não é por meio da figura de Hitler ou a comparação com a juventude hitlerista e o Holocausto que o movimento entra em choque. Essa mudança também é um ponto a favor de Gansel: a obviedade maniqueísta e moralista apenas passa perto do filme alemão, mas não o define.

A Onda de Gansel tem uma força própria e independe de seu substrato. Não tem função didática como protagonista. É, sozinho, um tratado sobre ideologia, manipulação, emulação e, sobretudo, sobre a humanidade, tal qual A Experiência (Das Experiment, 2001), de Oliver Hirschbiegel. Os dois exploram os limites conflituosos da psique colocada em evidência. Apesar de tomarem caminhos opostos, ambos tratam de experiências que fugiram ao controle e têm desfechos parecidos. Entretanto, podemos nos forçar a analisar que, em A Onda, o movimento proposto pelo professor Wenger perdeu o controle muito antes e de maneira mais inevitável do que a simulação de prisão em que o desregulado guarda Berus está envolvido.

Como ninguém tinha pensado nisso antes?

A contracorrente do movimento é exemplificada pela personagem Karo (Laurie, na outra versão), uma aluna que se recusa a fazer parte dA Onda. Embora nem mesmo Wenger possa perceber, no primeiro momento, Karo compreende mais do que qualquer um dos outros colegas o verdadeiro significado daquela experiência. O dilema quase piegas de seu namorado Marco (ou Dave, na história dos EUA), dos membros mais entusiastas dA Onda que se surpreende ao agredir a namorada (detalhe: na versão estadunidense, Dave empurra Laurie, na alemã, Marco dá um tapa forte no rosto de Karo), marca o ponto de virada da história e a move para o final quase inevitável.



Não se trata de fazer vista grossa para eventuais defeitos na narrativa ou na diegese de A Onda de Gansel, mas de ressaltar em que meandros o filme pôde ir além na reflexão do totalitarismo intrínseco ao ser humano. Os alunos de Wenger só valorizam a comunidade e o sentimento de pertença de maneira subjetiva, e pecam por ignorar que A Onda só faz sentido porque alimenta o individualismo de cada um. É, decerto, o que acontece com Tim, o freak da turma (nas outras versões, o personagem é Robert).

Todos os problemas de auto-estima do adolescente engatilham as melhores sequências do filme e criam um novo conflito, completamente inexistente nas outras versões. Ao espectador mais incrédulo, o clímax de A Onda de Gansel pode parecer forçado e não menos vicioso do que o moralismo de Dawkins e Rhue. Mas a ousadia do diretor alemão em ir até o extremo da situação e problematizar não apenas o que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido naquela escola californiana, em 1967, é valiosa.

Toda a nossa doutrinação ficcional alavancada por episódios reais de violência no mundo adolescente como os retratados em Elefante, de Gus Van Sant, e Querida Wendy, de Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, nos levam a prever a atitude de Tim. Como espectadores, até queremos que ela aconteça, mas nos confundimos na hora de apontar os culpados. A punição sobre o desfecho desagradável do movimento – e do filme, por conseqüência – recai sobre Wenger. O personagem quebra a quarta parede e nos olha nos olhos, como que nos encarasse e nos perguntasse se ele é mesmo o culpado, ou se a culpa é da história, ou do nosso fascista adormecido. Percebemos logo que o desfecho, por mais decepcionante que possa ser (e não acho que seja), é o ás na manga de Gansel. Ele foge com maestria do moralismo, caminha sobre a corda bamba do maniqueísmo, e nos faz sentir o gosto amargo da inevitabilidade.


Filmes Citados:

A Onda (Die Welle), Dennis Gansel (2008)

A Onda (The Wave), Johnny Dawkins (1981)

A Experiência (Das Experiment), Oliver Hirschbiegel (2001)

Querida Wendy (Dear Wendy), Thomas Vinterberg e Lars Von Trier (2005)

Elefante (Elephant), Gus Van Sant, 2003

Um comentário:

Nayran Marcos disse...

Sensacional! Muito foda! Parabéns! The Wave é um clássico!!!