3 de dez. de 2009

Revisitando um clássico

Por Juliana Galvão

Mesmo quem nunca viu o filme inteiro conhece a icônica cena de Cantando na Chuva na qual um homem sai - literalmente - cantando e dançando na chuva após um encontro bem sucedido. Entretanto, mais do que uma aula de sapateado, o filme é um registro da história do cinema. Mais precisamente de 1927, momento em que a 7ª arte experimentava a transição do cinema mudo para o falado.

Para descrever esse período, Cantando na Chuva abusa de metalinguagens e mistura fatos ficcionais e reais, como na sequência em que alguns produtores comentam sobre o longa O Cantor de Jazz, primeiro filme falado da história, produzido pela Warner Bros. O lançamento desse filme movimenta a indústria cinematográfica e faz com que todos os estúdios invistam em produções. O filme reproduz a agitação da época partindo do fictício estúdio Monumental Pictures, no qual trabalha o famoso ator Don Lockwood (Gene Kelly).

Don e Lina Lamont (Jean Hagen), que fazem par romântico em todos os longas do estúdio, começam a gravar um filme falado, gênero do qual nada entendem. Um dos primeiros problemas é a impossibilidade de usar a voz real de Lina – que é horrível. Esse era um problema comum aos estúdios. Muitos atores tinham voz ou dicção ruins. Para a indústria cinematográfica estadunidense, que vendia filmes pela participação de suas estrelas e não necessariamente pela história que contavam, essa era uma questão essencial.

Outros problemas diziam respeito à inserção de microfones no cenário (ninguém sabia onde colocá-los para não aparecer e ao mesmo tempo captar bem o som do estúdio), à falta se sincronia entre a boca dos personagens e as falas, à preocupação de reproduzir os sons que acabavam exagerados e às inadequações do roteiro. Quando o cinema era mudo os atores mexiam os lábios e muitas vezes falavam coisas que não tinham relação com o filme. Com o som, porém, é necessário ter um roteiro bem estruturado para as falas não parecerem ridículas ou desconexas.

O longa também traz um “apanhado” do pensamento das pessoas à época. Em diversas cenas ouvimos comentários sobre os filmes falados: “são estranhos”, “são ótimos”, “são vulgares”. Alguns achavam que era puro modismo, outros duvidavam que a novidade ia deslanchar. Mais do que mostrar, os diretores do filme sutilmente evidenciam sua opinião por meio dos movimentos de câmera. Sempre que alguém prepara uma crítica ao cinema, a câmera filma de cima para baixo. Ao contrário, durante uma dança ou uma cena de caráter positivo, a câmera filma de baixo para cima, engrandecendo o momento e mostrando ao espectador como o cinema é interessante.

É da personagem Kathy Selden (Debbie Reynolds) que vamos escutar duras críticas à indústria cinematográfica. No filme, Kathy é uma atriz de teatro que vai emprestar sua linda voz à Lina. Ela já havia se encontrado com Don, que se apaixona por ela – provavelmente por ser a única que não caiu no discurso do galã. Em uma conversa com Don ela deixa claro que não o considera um ator, pois só é capaz de fazer caretas e não de atuar.

Ela também diz não assistir a muitos filmes, pois são todos iguais: “Se viu um, já viu todos”. Podemos perceber que apesar das fortes críticas a personagem, na verdade, glorifica o cinema falado com o argumento de que só com as falas a arte está completa. Além disso, ao longo do filme Kathy vai mostrando ser como todas as outras pessoas ao admitir que já viu vários filmes de Don e que lê revistas de fofoca. Ela critica a massa, mas também faz parte dela.

Cheio de metalinguagens, o filme faz uma homenagem a esse momento crucial na história do cinema e mostra todos os problemas enfrentados pelos estúdios até encontrarem a forma mais adequada de produzir filmes falados. Fazer um musical para contar uma história como essa, inclusive, parece uma ironia. O filme está prevendo um futuro aonde os estúdios estarão equipados de tal forma que até uma dança complexa, na chuva, poderá ser filmada, o que de fato acontece quando, ao final do filme, vemos um outdoor com a propaganda do filme Cantando na Chuva. Nesse momento a história se torna cíclica: o filme que está no cartaz é exatamente aquele que acabamos de ver.

Filmes musicais não costumam ser vistos com bons olhos por todas as pessoas. A principal queixa sobre eles é de que são superficiais e não trazem reflexões mais consistentes. Ao contrário, é só sentar na cadeira, se divertir, e sair ainda mais vazio da sala de cinema. Em Cantando na Chuva, ao contrário, o filme trata com sutileza e humor um tema caro à história do cinema. Talvez por isso o filme seja o primeiro na lista dos 25 maiores musicais americanos de todos os tempos, idealizada pelo American Film Institute (AFI).

Em termos de espetáculos musicais, porém, o filme não pode ser considerado impecável. Em primeiro lugar, há cenas não musicadas tão grandes que você esquece que está vendo um musical. Em segundo lugar - e como um movimento inverso - a maioria das músicas dura tempo suficiente para você começar a se inquietar na cadeira e perguntar quando acaba. Além disso, algumas sequências fogem da história principal, como na coreografia em que Don interpreta um homem em busca de um emprego na Broadway.

As coreografias, ao contrário, são o ponto alto do filme. As sequências aonde Don e Cosmo aparecem sapateando são um espetáculo a parte. Fora isso, o primeiro lugar na lista da AFI vale pelo roteiro e pela história do filme. E (por que não) por Gene Kelly cantando na chuva? A música, gravada e regravada inúmeras vezes, já foi até subvertida por Stanley Kubrick no filme Laranja Mecânica, quando o personagem principal aparece cantando Singin’in the rain durante uma cena de estupro e violência.


Filmes citados:

Cantando na Chuva (Singin'in the rain), Gene Kelly e Stanley Donen (1952)

Laranja Mecânica (A Clockwork Orange), Stanley Kubrick (1971)

O Cantor de Jazz (The Jazz Singer), Alan Crosland (1927)

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