3 de dez. de 2009

A tradução de clássicos da música em Fantasia

Por Nuno Manna

Ao final do interlúdio, os músicos da Orquestra da Philadelphia ressurgem aos poucos, retomando seus instrumentos. O anfitrião do espetáculo, Deems Taylor, avisa que antes de chamar o próximo ato ele nos apresentaria alguém muito importante para Fantasia. Alguém que, segundo ele, é tímido e reservado, mas de uma personalidade cujas possibilidades até então passavam despercebidas. Eis que Taylor anuncia seu ilustre convidado. “Estou muito feliz de apresentar pra vocês: a trilha sonora”. Vemos, então, esse peculiar personagem, uma linha que vibra de acordo com o timbre e a altura de sons. Taylor conclui: “Cada som belo também gera uma imagem bela”. Ainda que essa fala se refira a um momento específico do filme, ela é emblemática no sentido de resumir a relação entre imagens e sons – fundamentalmente imagens e música – em Fantasia.

No cinema, de uma forma geral, é recorrente um tipo de uso da música que lhe confere um papel secundário nos filmes. A música basicamente acompanha a ação, auxilia na construção do ritmo e do clima. Não resta dúvidas que mesmo ocupando esse lugar, existem músicas que, em grande medida, sustentaram cenas antológicas da história do cinema. A valsa das espaçonaves em 2001 – Uma Odisséia no Espaço (Danúbio Azul, de Strauss), o delírio do capitão Willard no início de Apocalypse Now (The End, de The Doors), o duelo de Frank e Harmonica em Era Uma Vez no Oeste (canção-tema do filme, de Ennio Morricone), a seção na barbearia de Chaplin em O Grande Ditador (Barbeiro de Sevilha, de Rossini) e, por que não?, o aquecimento de Alex em Flashdance (Maniac, de Michael Sembello). Em outras situações a música até ajuda a compor o motivo das cenas, sobretudo em musicais. Mas o que os realizadores de Fantasia alcançaram foi algo ainda mais profundo e importante no sentido de chamar a música para o primeiro plano, acabar com a timidez do seu uso e fazer dela objeto de fundação da própria imagem. Voltar ao filme de 1940 e insistir neste ponto que o consagrou, sobre o qual muitos já se debruçaram, além de nos parecer um passo básico para se discutir cinema, é uma forma de reforçar o fato de que, até hoje, Fantasia continua sendo a maior referência nesse tipo de experiência.

Podemos dizer que, de certa forma, o que Walt Disney e seus companheiros fizeram em Fantasia foi traduzir sons para imagens, um movimento de significação de um discurso para outro. Em alguns momentos, essa idéia pode ser vista de forma mais evidente, como na já mencionada “aparição” da trilha sonora convidada pelo apresentador Deems Taylor, onde a pista sonora é reproduzida na pista da imagem. Outro momento ainda mais interessante é a primeira peça do filme, classificada por Taylor como absolute music (música absoluta). Nela, ouvimos Tocana e Fuga em Ré Menor, de Bach, enquanto assistimos a uma dança de imagens abstratas e cores que acompanham a música, como se compusessem seu corpo e seus movimentos. A relação aqui não é mais tão direta quanto à “aparição” da trilha sonora, mas uma representação fluida de possíveis imagens mentais que a música pode produzir. Em outras palavras, a sequência que vemos é algo parecido ao que poderíamos imaginar se escutássemos Bach de olhos fechados. Não por coincidência, a peça do filme é de uma parceria com Oskar Fischinger, artista alemão que fez diversas experiências com música e cinema, convidado por Disney para a grande empreitada de Fantasia. Ao abrir o filme, a peça parece ser um esforço primeiro de tradução, menos “automático” – ou menos “literal” – que o posicionamento da pista sonora na imagética. Ela envolve um belíssimo trabalho de interpretação de Fischinger, e nos proporciona uma experiência transcendente.

Como aponta Roger Silverstone em Por que estudar a mídia?, a tradução não é um processo neutro. A passagem de um discurso para outro parte mesmo de um gesto interpretativo. Silverstone afirma ainda que a tradução é acompanhada por certa agressão, no sentido de que nunca é possível alcançar o todo do discurso inicial. Isso não implica necessariamente em um resultado negativo. No caso de Fantasia, a própria injeção de interpretação é justamente o elemento que torna o filme tão rico. Se na primeira peça temos acesso ao mundo abstrato imaginado por Oskar Fischinger, as demais são ainda mais carregadas de elaboração, partindo para a figuratividade e a narratividade, sempre tendo a música como germe e inspiração – com exceção da peça protagonizada pelo camundongo queridinho da casa, Mickey, cuja história foi escrita antes da música.

Ao introduzir a peça do balé Quebra-Nozes, de Tchaikovsky, Taylor avisa que nós não veremos quebra-nozes algum na tela. “O único lugar onde ele restou foi no título.” O que vemos, então, são pequenas fadas que deixam trilhas luminosas por onde passam, cogumelos que dançam como gueixas, folhas coloridas sopradas delicadamente pelo vento. Sobre a peça com Sinfonia No 6, Taylor conta que Beethoven pintara uma imagem musical de um dia no campo. A peça de Disney ganha feições mitológicas no Monte Olimpo, com unicórnios, centauros e deuses. A Dança das Horas, de Ponchieli, é dançado por avestruzes, elefantes, hipopótamos e crocodilos. Noite na Montanha Calva, de Mussorgsky, inunda o mundo de criaturas malignas, e é rebatido em seguida pela esperança do amanhecer de Ave Maria, de Schubert, em uma das cenas mais bonitas do filme. Um dos grandes méritos de Fantasia é não se pretender traduções “fiéis” das músicas, mas um novo e admirável espetáculo a partir delas.

Fantasia reúne uma coleção de algumas das mais consagradas obras da música erudita. Esperar que tais obras fossem adaptadas com “literalidade” seria de enorme pretensão de seus realizadores e ingenuidade de seus espectadores, uma vez que o objetivo é essencialmente inalcançável. O que o filme faz em seu processo de tradução, principalmente nos momentos de maior densidade interpretativa, é acrescentar mais uma camada plástica à experiência com a música. Por essa perspectiva, partimos de uma experiência pessoal completamente livre de fruição musical com tais obras para uma relação com uma certa mediação que o filme nos oferece.

Nesse sentido, voltamos mais uma vez a Silverstone, que afirma que a tradução, além de envolver agressão, também envolve confiança, ou seja, aquele que traduz confia que seu produto tem valor em relação à obra original. Encarar o desafio de traduzir obras tão consagradas só faz sentido se houver um esforço interpretativo que valha a pena de ser oferecido aos espectadores, que valha a pena a “limitação” da liberdade imaginativa do ouvinte e a circunscrição em imagens concretas selecionadas por Disney. E o que temos em Fantasia é um trabalho tão competente e de tanta beleza que vale a pena se entregar à confiança da interpretação dos realizadores. O resultado, é claro, não é uma fruição alargada da música ou das imagens, mas a de um dispositivo que se formou a partir da relação entre música e imagem – que ainda é cinema, mas que expande os próprios horizontes do que o cinema é, como toda grande obra de vanguarda.


Referência bibliográfica:

SILVERSTONE, R. Por que estudar a mídia? São Paulo: Loyola, 2002.


Filmes citados:

Fantasia (Fantasia), produzido por Walt Disney (1940)

2001 – Uma Odisséia no Espaço (2001 – A Space Oddyssey), Stanley Kubrick (1968)

Apocalypse Now (Apocalypse Now), Francis Ford Copolla (1979)

Era Uma Vez no Oeste (Once Upon a Time in the West), (1968)

O Grande Ditador (The Great Dictator), Charles Chaplin (1940)

Flashdance (Flashdance), Adrian Lyne (1983)

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