3 de dez. de 2009

Violência e loucura em duas adaptações de Shakespeare

Por Bráulio Siffert

As universais obras do dramaturgo inglês William Shakespeare foram e são enormemente adaptadas para o cinema; cada diretor com sua leitura e cada ator com sua expressão conferem algum ou muitos novos pontos de vista às peças. Aqui, porém, a análise não recairá sobre a adaptação em si de duas conhecidas obras de Shakespeare, mas incidirá em dois elementos, ora principais ora secundários, que estão presentes nos dois filmes que serão analisados: a violência e a loucura. Em Hamlet, de Laurence Olivier, a atuação fria e serena do personagem principal (cujo ator é o próprio diretor) nos faz questionar se a suposta loucura de Hamlet não seria algo propositalmente construído por ele próprio para servir de certa maneira como justificativa para a sua necessária vingança. Akira Kurosawa, usando Rei Lear como pano de fundo para sua obra Ran, demonstra como que a gradual loucura do grande senhor é também algo plenamente justificável. Ambos os filmes, portanto, dizem cada um a seu modo que a loucura não é uma doença inexplicável ou acidental, mas que tem sua razão de ser. A violência é a causa principal, ou ao menos primeira, para a condução dos personagens à loucura: Hamlet teria enlouquecido por querer de qualquer forma vingar o assassinato do pai, enquanto Hidetora enlouquece gradualmente por ter que ir enfrentando a “violência sentimental” de cada um dos filhos.

Claro está que o modo de narrar e de encenar influi sobremaneira no que está sendo narrado e encenado, mas para analisar os filmes a atenção estará um pouco mais voltada para o que de novo eles trazem para a peça no que diz respeito à violência e à loucura, e não para o enredo em si, que é basicamente o mesmo da obra de Shakespeare.

O filme de Olivier já começa com uma fala em off que justifica e defende a (falta de) atitude do “herói”: “..a tragédia de um homem que não podia tomar uma decisão”. O aspecto sombrio, para o qual contribui o fato do filme ser em preto e branco, é construído pela escuridão do castelo, músicas algo fúnebres, neblinas, falas arrastadas, olhares penetrantes, imaginações, diálogos fortes. Além disso, o filme centra-se muito nos aspectos psicológicos dos personagens. Algumas das reflexões de Hamlet, por exemplo, são por ele pensadas – com narração em off. Já em seus primeiros pensamentos, surge a ideia do suicídio, que aparecerá outras vezes durante o filme.

A cena que dá de fato o início da trama ao redor do desejo de vingança do príncipe da Dinamarca poderia nos levar a já desconfiar de sua sanidade. Porém, essa ideia é de antemão descartada: ninguém é esquizofrênico em conjunto – não é só Hamlet que vê o pai em forma de fantasma. Por mais paradoxal que possa parecer, essa visão não se apresenta como algo sobrenatural, e o filme joga com isso: o pouco visível ex-rei soa mais como uma voz do além, da imaginação ou mesmo do desejo de ouvir aquilo, do que literalmente como um fantasma. Após a conversa com seu falecido pai, o príncipe desfalece: mas não é loucura, é surpresa, raiva, angústia, desejo de vingança. De fato, muitas pessoas passam por loucas quando na verdade sofrem de uma série desses outros sentimentos, que certamente tem correspondência na vida real.

Outra importante cena para se pensar no possível fingimento de Hamlet enquanto louco é a que Polônio afirma para o Rei e para a Rainha que o príncipe está louco, mas não vê que este ouve a conversa. Logo em seguida, Hamlet chega para conversar com os outros três, e diz frases aparentemente sem sentido. Já na conversa com Ofélia – realizada em um amplo salão, em cujo fundo há uma longa cortina por trás da qual se escondem o Rei e Polônio (e que no filme é quase claro que são percebidos por Hamlet) –, o protagonista se confessa louco e desafia os outros que o ouvem: “Isso me enlouqueceu. Não haverá mais casamentos. Os que já estão casados...todos, exceto um, viverão”. Quando ele sai, o Rei entra e afirma: “Qual amor! Sua doença não vem disso. O que ele disse, embora sem nexo não parece loucura. Há algo em sua alma que é a origem de sua melancolia. Quando vier à tona, temo que seja muito perigoso(...)A loucura dos grandes não deve ficar sem vigilância”.


As qualidades de são, frio e calculista de Hamlet são evidentes em diversos momentos e são reforçadas pela atuação serena e concentrada de Olivier. As câmeras, que flagram esse olhar do ator, também têm função primordial. Junta-se a tais aspectos técnicos a destreza do enredo shakespeariano: por exemplo, Hamlet escolhe a peça que os atores devem apresentar para a Corte e insere uma fala para descobrir na reação do tio a confissão do crime; Hamlet deixa de matar o então rei quando este está rezando, pois julga que assim ele iria para o céu.

Existe, porém, uma personagem que de fato enlouquece: Ofélia. Mas é uma loucura que pode ser justificável: após o acúmulo de incertezas em relação ao romance com Hamlet, há o estopim que é a morte do pai dela, Polônio. Tragicamente, a loucura termina em uma morte inexplicável. Ofélia se joga no mar por que, na sua insanidade, não acreditava no perigo daquilo ou por que a loucura o conduziu para o suicídio?

Fechando o ciclo, a violência – que havia dado a largada para a trama com a imaginação do assassinato do Rei – volta à tona com um desafio de adagas entre Hamlet e Laertes. A tragédia que se desenrola a partir desse embate é generalizada. A violência aqui, portanto, não é fortuita: assim como a loucura, tem sua razão de ser, e parece não poder ser diferente.

Um último ponto em relação a Hamlet: o elemento principal do filme não é nenhum dos dois que nos interessaram – violência e loucura –, mas sim a ambição por poder, que é a marca forte de Shakespeare. Mas pode-se mesmo pensar que a ambição, quando tão absurda a ponto de conduzir alguém a matar seu próprio irmão, não é outra coisa senão loucura.


O filme Ran (1985), do diretor japonês Akira Kurosawa, tem como base inspiradora de seu enredo duas histórias: a do chefe de guerra Motonari-Mori (1497-1571) e seus três filhos (HAPGOOD, 1994, p.236), e a peça Rei Lear, de William Shakespeare. As três tramas começam com um grande senhor de terras dividindo-as com seus descendentes. Só no caso de Rei Lear é que os descendentes são mulheres. A chance de Shakespeare ter conhecido a história real de Motonari Mori e nela ter baseado sua peça não pode ser de todo descartada, mas, de uma forma ou de outra, mostra que a partilha de terras entre os descendentes e o conseqüente conflito pelas mesmas – extrapolando as afinidades sentimentais que deveriam existir entre familiares – não é algo tão raro. Também estão presentes os dois fatores genéricos que aqui nos interessa: violência e loucura. Mais especificamente no filme, a violência, que vai tomando corpo a partir da primeira decisão de Hidetora, culmina numa grande guerra entre os três exércitos (azul, amarelo e vermelho) dos três filhos. A loucura, presente também em Shakespeare, é acentuada por Kurosawa em relação ao grande senhor das terras – mesmo porque o cineasta utilizou de modo magistral de aspectos técnicos, como a maquiagem.

Em Ran, a rejeição que os filhos têm em receber o pai e grande senhor Hidetora após a partilha e mesmo a loucura que o acomete aos poucos, parecem constituir uma espécie de vingança por ele ter sido tão cruel e ter matado tanta gente. O próprio filho Saburo diz a seu pai que ele está louco, matou muita gente e que queria dividir com seus filhos o que construiu com sua ferocidade. E essa “verdade” não agrada ao pai, que decide punir esse filho, não lhe concedendo nenhum pedaço de chão. De fato, em nossas vidas percebemos que diversas vezes o que é agradável de se ouvir não é verdadeiro, e o que é verdadeiro não é agradável, de tal forma que relações marcadas por desconfiança e pouca compaixão são abaladas severamente no caso de uma das partes dizer alguma verdade (desagradável).

Assim como na peça, o descendente sincero é, ao fim e ao cabo, o único que realmente ama e quer bem ao pai, não ambicionando em troca possessão alguma. O bobo é outro injustiçado nas duas obras: é efetivamente o que acompanha o rei em todas suas angústias e aventuras, protegendo-o, cuidando-o e dizendo sempre a verdade, mas que não passa de um bobo, utilizado para divertir o rei e seus súditos. Mais para a frente no filme, quando a loucura já parece dominar Hidetora, o próprio Bobo – que, pelo seu nome e sua função, deveria ser sempre inferior em relação aos senhores – é quem tem que explicar os fatos para o senhor e guiá-lo na procura de seu filho injustamente considerado bastardo.

Os filhos que dizem para o pai que o amam e que o vão proteger por toda a vida são os que, mais à frente, irão fechar as portas para ele, deixando-o à mercê da própria velhice – que se converte em loucura, por causa justamente dessa rejeição dupla. A loucura de Hidetora é em certo sentido, portanto, justificável – assim como é justificável a possível ou forjada loucura de Hamet. É uma “saída” realmente bem provável para tal situação, assim como seria o suicídio, a depressão, o esquecimento. A loucura aqui, enfim, não é algo nato, inerente ao senhor – de fato, se pararmos para pensar na situação dos considerados doentes mentais, provavelmente iremos perceber que grande parte se tornou algo que pode se julgar de louco em virtude de algum fato ou de uma sucessão de fatos da vida concreta; ou seja, os distúrbios acabam tendo alguma justificativa que vai além da própria cabeça do doente. A rejeição dos filhos não é algo que vem da imaginação de Hidetora, é algo real, efetivo. Juntando-se a isso sua atribulada trajetória cheia de conflitos, denúncias e contradições, sua ingênua confiança nos filhos e sua natural velhice, a loucura além de ter justificativa, pode ser, dentro da condição de sua vida, até algo provável.

As mortes em Shakespeare – que são muitas – dificilmente são naturais. A de Rei Lear (por extensão, Hidetora) pode parecer a princípio natural, mas podemos questionar dizendo que, apesar de velho, sua morte foi sobremaneira antecipada pelo desgosto a que foi submetido após não poder, nas terras em que ele próprio cultivou e partilhou, ingressar, viver em paz e ter o falecimento atrasado. Nesse sentido, não é uma morte efetivamente natural. E, no filme, há o agravante de estar em meio a um combate entre os exércitos de dois filhos.

Por fim, é necessário ressaltar a beleza visual do filme de Kurosawa, com grandes e importantes planos abertos, maquiagem forte e sugestiva (como o gradual empalidecimento de Hidetora) e belíssimo figurino (o filme ganhou, inclusive, o Oscar de Melhor Figurino).

Ressalta-se, para finalizar, que ambos os filmes aqui tratados conseguem efetivamente fazer aquilo que Lukács chama de mediação entre o singular e o universal. Consegue-se, a partir dessas obras, refletir sobre as condições genéricas de violência e loucura, que, embora cotidianamente presentes em nossas vidas, carecem, ou mesmo são impossíveis de ter, explicação racional.

Referência Bibliográfica:

HAPGOOD, Robert. Kurosawa’s Shakespeare films: Throne of Blood, The Bad Sleep Well, and Ran. In: DAVIES, Anthony; WELLS, Stanley. Shakespeare and the moving image: the plays on film and television. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1994. Chap. 13. p. 234-249



Filmes citados:

Hamlet (Hamlet, 1948), de Laurence Olivier

Ran (Ran, 1985), de Akira Kurosawa

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