3 de dez. de 2009

A construção de uma memória coletiva do sertão em: O Fim e o Princípio (2005), de Eduardo Coutinho, e Aboio(2005), de Marília Rocha.

por Alexandra Duarte






Um céu aberto azul celeste, cadeiras na porta de casa. Dona Zefinha, 94 anos, diz não lembrar-se de quase nada, mas faz uma reza de quase dois minutos, sem falhar-lhe a lembrança em nenhum momento.

Assim começa a visita de Eduardo Coutinho e sua equipe ao sítio de Araças, uma comunidade do interior da Paraíba. Nesse momento, ele está à procura de uma locação e pessoas que falem da vida no sertão para fazer um documentário. Não existe um projeto, nem uma pesquisa prévia para a realização do filme, o que fica claro nos primeiros offs, nos quais Coutinho explica suas intenções. O Fim e o Principio (2005) é um documentário que vai trilhar seus próprios caminhos. Isso fica evidente na escolha em filmar (e inserir na montagem final) os trajetos percorridos pela equipe com uma câmera em mãos, que parece ter vida própria ao desbravar uma comunidade do sertão da Paraíba, em apenas, quatro semanas.

No mesmo ano, outra equipe adentra o sertão de Minas Gerais, Pernambuco e da Bahia. Mas, por esses lados, o início se dá com um canto entoado bem no meio da caatinga. Aboio (2005), também um documentário, começa sem nenhuma explicação, diferentemente do filme de Coutinho. O que mais marca é a trilha sonora, importante personagem das histórias que serão contadas.

O filme começa com o som de um sino superposto em seguida a um canto forte e alto na voz de um homem. Para introduzir a história, a documentarista Marília Rocha opta por imagens em super 8 e preto e branco da caatinga e de seus personagens (animais, vegetação, sol escaldante e vaqueiros), que obedecem o ritmo da trilha sonora. Só na segunda sequência, imagens em preto e branco de aparência envelhecida acompanham a narração em off de um homem que conta “naquele tempo...”.
Os dois filmes são distintos quanto aos efeitos visuais e sonoros que provocam. O Fim e o Princípio guarda relação com toda a obra de Coutinho. É uma reunião de vários depoimentos, encadeados e ao redor de temas comuns: a vida no sertão, a velhice, a morte. É um filme feito da espera e da paciência. Na cena em que conversa com Leocádio, Coutinho pergunta: “E hoje, você quer conversar?” ali, deixa escapar que aquela não era a primeira tentativa de conversa, que a aproximação demanda tempo e confiança.

Aboio segue no ritmo da cantoria dos vaqueiros, mais interessado numa imagem que dê conta de expressar e falar das forças, das cores, da história e, claro, do cotidiano dos vaqueiros no sertão. É um filme mais poético, ou seja, a construção de significados foge dos padrões narrativos e busca provocar mais sentimentos com a imagem do que com os depoimentos. Tanto é assim que grande parte destes são reproduzidos em offs e as imagens - descoladas das falas - acrescentam significados, ao invés de meramente ilustrarem o que é dito. Marília também explora na plasticidade da imagem as várias camadas e texturas do sertão. A secura, por exemplo, é sugerida pela luz estourada, e a aridez pelo travelling acelerado em meio à vegetação nativa.


Aparentemente são filmes sobre a vida no sertão. Mas, um olhar mais atento mostra que o mais importante nesses filmes é a capacidade de resistência das antigas tradições. As imagens em super 8, as fotografias que aparecem dos vaqueiros e as frequentes frases iniciadas com “naquele tempo”; “na época do meu pai”, provam, em Aboio, tal força em resistir. É a memória de uma época e de sua tradição que é trilhada no presente dos filmes, cuidadosamente tecida pelos vaqueiros do sertão por um lado, e, por outro, pelos moradores de Araçás. O ato de tecer a memória é metaforizado na cena em que Rita tece um fio de algodão, indicando o princípio do filme que Coutinho “procurava” na Paraíba.

Araças é um lugarejo do Brasil, esquecido pela cidade grande. O sítio torna-se um atrativo, apenas em épocas de eleição, para políticos à caça de eleitores. O único carro que vemos no filme é uma Kombi eleitoral (além, é claro, do carro da equipe de filmagem). Até os moradores mais jovens se esquecem de Araças, como, por exemplo, a sobrinha de Zé de Sousa, que passa todo o dia fora da comunidade. Em uma percepção filosófica, a memória é considerada fruto do esquecimento. Enquanto construção de uma lembrança efetiva, só existe memória porque há o esquecimento.

O documentário, em uma de suas linhas mais expressivas, busca pelo que foi esquecido e registra a construção da memória, por meio dos recursos técnicos e narrativos que o cinema proporciona. Em O Fim e o Princípio, isso se dá através da fala e, principalmente, da imagem duradoura dos corpos de Zefinha, Mariquinha, Zé Assis, Maria Borges e tantos outros.

Há no encadeamento de conversas uma sugestão: tudo se passa como se a equipe fosse uma parente distante do Rio de Janeiro que viaja à Paraíba e, ao chegar, vai fazer as visitas, como é de praxe no interior. No início do filme, Rosa traça um mapa de Araças localizando espacialmente seus parentes. A câmera ao filmar o caminho da equipe em suas visitas, reproduzindo o caminho traçado no papel, transporta o espectador para aquele universo.

Na maioria das vezes, os anfitriões oferecem café, um tradicional início para uma boa “palestra” (em outros lugares fala-se prosa). Os velhinhos gostam de conversar e Coutinho está disposto a ouvir. Falam sobre as rezas, as lendas, as dificuldades que enfrentaram no sertão, os tempos de juventude. A memória de muitos é impressionante e revela a força de uma cultura oral marcada por arcaísmos como palestra, ligeirinho, barruada (confusão), arengando (brigando), entre outros. Tudo isso contribui para o tom de conversa, como rememoração e criação de uma intimidade, efeitos produzidos pelo filme.
Alguns moradores são mais desconfiados e levam um tempo até se renderem à conversa, como Chico Moisés. A equipe não tem pressa. Com o tempo, sorrisos, risadas e, logo, Chico Moisés transforma-se, e a conversa dura mais de três horas.

A cena final de O Fim e o Princípio se dá ao redor da mesa, primeiro cheia na hora do almoço e depois vazia. O fim é na verdade o princípio. O filme começa recuperando e construindo junto àquelas pessoas uma colcha de retalhos, que resulta na memória coletiva da comunidade, memória feita através dos afetos. No fim, quando Coutinho vai se despedir dos moradores a relação de amizade firma-se na fala de Zé Assis: “Dexa sôdade na gente”.


Aboio também termina com saudade. O último depoimento é de um senhor que tem amor ao que faz. Ele compara o aboio a uma oração, um carinho feito ao gado. Segue-se um corte seco e as imagens voltam ao preto-e-branco em registro de super 8. Um quintal de animais, filmado bem de perto, e em um último off, um homem cantarola um aboio, que começa assim: “Fazer de quem tem saudade” e termina: “ô saudade companheira, de quem não tem companhia”.

O filme de Marília Rocha tenta reconstruir a tradição do aboio, canto tradicional entre os sertanejos para manter a boiada unida. Talvez, por isso, o som seja tão marcante. Mas o trabalho com as imagens é sem dúvida baseado na recuperação do passado. Assim, os dois filmes, ainda que usando de recursos diferentes, valem-se de um olhar atento e interessado para construírem em conjunto com as comunidades a imagem que represente com força e sentimento o sertão. Essa imagem é a memória, a presentificação de um tempo que não volta, mas pode e deve ser recordado, “re-vivido” e resignificado. A memória que revela a resistência da tradição, mantida pela cultura oral, pela preservação das crenças e rituais sertanejos.

Filmes citados:


O Fim e o Princípio, Eduardo Coutinho (2005)

Aboio, Marília Rocha (2005)

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